Saturday, March 20, 2010

O BEIJO NA BOCA


O BEIJO NA BOCA

A. P. Ribeiro*

Uma cervejinha sabe bem
a olhar para o programa do atrasado mental
enquanto leio o Guy Debord

Nos períodos em que a revolução está distante
é nos círculos poéticos que se conserva a ideia de totalidade
é isso: a ideia de totalidade, de homem total
está para lá da economia
está para lá do cálculo mesquinho e mercantil
está no Artista
no poeta que cria à mesa
que chama o gerente
e pede mais uma
quando há cacau para a cerveja
o mundo pula e avança
e o poeta também
o poeta escreve
abre mundos, abre portas
o raciocínio corre célere
esquece que a Gotucha não está
olha para o cu da gaja
o poeta tem a humanidade à sua mesa
não está só
apesar de o estar
vai pedindo mais cerveja
comemora o ano novo
com um dia de antecedência
a pança enche
há pouco estava triste
agora rejubila de alegria
não sabe bem porquê
o poeta nem sempre usa a razão
deixa a pena correr
chama o gerente
-uma cerveja, se faz favor!-
que isto hoje está a render
está em causa o futuro da humanidade
o poeta está feliz e o gerente traz a cerveja
de sorriso rasgado:
"cá está um bom cliente
um cliente que consome e que está feliz
um cliente que pede a cerveja com alma"
o gerente não pergunta o que o poeta escreve
mas isso também não importa
o que importa é que o poeta-cliente está feliz
e produz
hoje nem sequer pensa em motins e revoluções
tem uma perspectiva holística
vê o homem total
o homem que está de bem consigo próprio
que está de consciência tranquila
que até se ri do programa do atrasado mental
e da diva televisiva de fim de ano
mas continua a não poder ver o primeiro-ministro
sempre que vê o primeiro-ministro o semblante altera-se
sempre que ouve o primeiro-ministro chovem cobras
mas não deixa de se sentir acima das questõezinhas económicas,
dos défices, das décimas, das bolsas, da eficácia
o poeta, às vezes, sente falta de companheiros
para discutir as suas teses
o poeta sente falta do Rocha
e das suas análises sociológicas
mas não deixa de se sentir em cima
a cerveja não acabou
e pode vir sempre mais uma
que se foda!
O que importa é gozar o momento
curtir a hora
enquanto dura
bem sabemos que o mundo é uma merda
que fizeram do mundo uma merda
mas sempre podemos olhar para a perna da gaja
sempre podemos curtir a cerveja
a cerveja substitui os amigos
a cerveja substitui as gajas
e até julgamos que estamos próximos do sublime
e até julgamos que descobrimos a pólvora
mesmo que estejamos sozinhos
num café de Braga
onde pouco se passa:
um homem lê o jornal
o gerente conversa com dois clientes
a televisão passa o concurso do atrasado mental
o outro cliente bebe e escreve
pois, por acaso, é poeta
começou a pensar que era poeta aos 16 anos
quando escrevia umas coisitas sentimentais
depois fez umas pausas
publicou uns livros
e agora tem a mania de escrever todos os dias
pensa que acrescenta algo à humanidade
pensa que a pode mudar, que a pode moldar
à sua imagem e semelhança
mas é o gordo atrasado mental que arranca as palmas
de vez em quando os media lembram-se do poeta
mas depois desaparecem
as horas vão passando
e o poeta continua a beber
vai sair mais um daqueles épicos
para contar aos netos
ouve amigos que admirava e que já partiram
o Jaime, o Joaquim, o Alba
e as barbas crescem
as conversas do gerente com os clientes
não o entusiasmam
falam de voltas e de carros e de cartas
é certo que o poeta gosta de andar às voltas
até se sente atraído pela gaja que está ao balcão
e que fuma
e grita: GAJA QUE ESTÁS AO BALCÃO, AMO-TE!
E a gaja dá-lhe um beijo na boca.