Sunday, March 21, 2010

A CARINA


Lá se foi mesmo a Carina. Aqui na "Ribeirinha" as empregadas andam sempre a mudar. E a limpar o chão. Vá lá que ficou a loira boazona. É simpática. Já me olha com outros olhos. Mas não era isto que eu queria escrever. Ontem tive um forte ataque de asma. E ainda há pouco tive de usar a bomba e a máscara para me sentir melhor. Diários. É o que eu escrevo. E além disso a barriga está cada vez maior. Sou um artista. É isso que sou. A menina limpa. Fala com a colega. O antigo patrão reúne com o novo matulão. As gajas riem. Definitivamente isto está com pouca clientela. E o matulão deve pagar pouco às gajas. Mas não era isto que eu queria escrever. Eu quero escrever como os eleitos. Eu quero escrever como os doidos. Eu quero escrever sem limites. Eu tenho de ser "o Poeta". Não um mero poeta de café mas também não um poeta de colóquios, não um poeta estabelecido.

Saturday, March 20, 2010

O BEIJO NA BOCA


O BEIJO NA BOCA

A. P. Ribeiro*

Uma cervejinha sabe bem
a olhar para o programa do atrasado mental
enquanto leio o Guy Debord

Nos períodos em que a revolução está distante
é nos círculos poéticos que se conserva a ideia de totalidade
é isso: a ideia de totalidade, de homem total
está para lá da economia
está para lá do cálculo mesquinho e mercantil
está no Artista
no poeta que cria à mesa
que chama o gerente
e pede mais uma
quando há cacau para a cerveja
o mundo pula e avança
e o poeta também
o poeta escreve
abre mundos, abre portas
o raciocínio corre célere
esquece que a Gotucha não está
olha para o cu da gaja
o poeta tem a humanidade à sua mesa
não está só
apesar de o estar
vai pedindo mais cerveja
comemora o ano novo
com um dia de antecedência
a pança enche
há pouco estava triste
agora rejubila de alegria
não sabe bem porquê
o poeta nem sempre usa a razão
deixa a pena correr
chama o gerente
-uma cerveja, se faz favor!-
que isto hoje está a render
está em causa o futuro da humanidade
o poeta está feliz e o gerente traz a cerveja
de sorriso rasgado:
"cá está um bom cliente
um cliente que consome e que está feliz
um cliente que pede a cerveja com alma"
o gerente não pergunta o que o poeta escreve
mas isso também não importa
o que importa é que o poeta-cliente está feliz
e produz
hoje nem sequer pensa em motins e revoluções
tem uma perspectiva holística
vê o homem total
o homem que está de bem consigo próprio
que está de consciência tranquila
que até se ri do programa do atrasado mental
e da diva televisiva de fim de ano
mas continua a não poder ver o primeiro-ministro
sempre que vê o primeiro-ministro o semblante altera-se
sempre que ouve o primeiro-ministro chovem cobras
mas não deixa de se sentir acima das questõezinhas económicas,
dos défices, das décimas, das bolsas, da eficácia
o poeta, às vezes, sente falta de companheiros
para discutir as suas teses
o poeta sente falta do Rocha
e das suas análises sociológicas
mas não deixa de se sentir em cima
a cerveja não acabou
e pode vir sempre mais uma
que se foda!
O que importa é gozar o momento
curtir a hora
enquanto dura
bem sabemos que o mundo é uma merda
que fizeram do mundo uma merda
mas sempre podemos olhar para a perna da gaja
sempre podemos curtir a cerveja
a cerveja substitui os amigos
a cerveja substitui as gajas
e até julgamos que estamos próximos do sublime
e até julgamos que descobrimos a pólvora
mesmo que estejamos sozinhos
num café de Braga
onde pouco se passa:
um homem lê o jornal
o gerente conversa com dois clientes
a televisão passa o concurso do atrasado mental
o outro cliente bebe e escreve
pois, por acaso, é poeta
começou a pensar que era poeta aos 16 anos
quando escrevia umas coisitas sentimentais
depois fez umas pausas
publicou uns livros
e agora tem a mania de escrever todos os dias
pensa que acrescenta algo à humanidade
pensa que a pode mudar, que a pode moldar
à sua imagem e semelhança
mas é o gordo atrasado mental que arranca as palmas
de vez em quando os media lembram-se do poeta
mas depois desaparecem
as horas vão passando
e o poeta continua a beber
vai sair mais um daqueles épicos
para contar aos netos
ouve amigos que admirava e que já partiram
o Jaime, o Joaquim, o Alba
e as barbas crescem
as conversas do gerente com os clientes
não o entusiasmam
falam de voltas e de carros e de cartas
é certo que o poeta gosta de andar às voltas
até se sente atraído pela gaja que está ao balcão
e que fuma
e grita: GAJA QUE ESTÁS AO BALCÃO, AMO-TE!
E a gaja dá-lhe um beijo na boca.

Tuesday, March 9, 2010

o chato do costume

O Piolho está quase cheio e eu estou só. Duas gajas falam e bebem cerveja. Dois gajos bebem cerveja e falam. Sou o cronista do quotidiano. Escrevo mas não há mais cerveja para mim. Tenho o "Canto de Mim Mesmo" de Walt Whitman à minha frente. Chega o chato do costume.

DOS FILHOS

“Não entendo como há editoras que me rejeitam. A minha forma de escrever é original. Já o disse. Não sou o melhor seleccionador. Mas não faço outra coisa senão escrever…e ler. Vivo da escrita. Vivo literalmente da escrita. Os meus textos são todos meus filhos. À falta de amigos e de amigas tenho os meus filhos. Uns ficam. Outros são rejeitados. Outros ainda ressuscitam. Mas são todos meus filhos. Amo-os. Nascem de mim. Sou o criador. A mãe que os pare. E o criador é livre e feliz.”

Sunday, March 7, 2010

1

Os homens falam contigo ao balcão. Tu ris. Eu não falo. Os homens propõem-te negócios. Eu não te proponho nada. Nem te prometo nada. Limito-me a vir cá consumir cafés e cervejas e a trabalhar no meu livro.

2

Abençoado por Deus, como diz a D.Rosa.
Ficar na cama até às cinco. Vir à Padeirinha ver a Carina. Continuar a ler Henry Miller.
Estou condenado a acreditar no Homem.
Não me dou facilmente às pessoas. Em sociedade sou normalmente reservado. Não sou daqueles que metem conversa facilmente, que se relacionam facilmente com os outros. Só quando estou muito entusiasmado com alguma coisa ou com alguém. Ou quando estou em situação de palco.

Tuesday, March 2, 2010

O POETA FALA AOS ANJOS


O POETA FALA AOS ANJOS

Agora compreendo, temos de celebrar a mulher. A mulher livre. Por isso tantas vezes a provocámos. A mulher sagrada. Como Maria Madalena. Que nos dá à luz e nos dá a luz. Que nos dá o amor.


O sagrado feminino tem sido espezinhado ao longo dos tempos pelas Igrejas, pelos poderes. Só assim se explicam tantas guerras, tanta ganância, tanta luta pelo poder. A revolução anarquista e surrealista passa pelas mulheres. Daí o endeusamento da mulher feito pelos surrealistas.


As mulheres têm um poder de que nem sempre têm consciência. O poder de criar vida, o poder de dar o amor. Sim, agora compreendo. Não pode haver contradição entre o amor e a revolução. Amamos as mulheres. Dissemos, escrevemos aquelas palavras, aqueles palavrões, só para as provocar, para as despertar.


É uma bênção olhar para a mulher amada, para a mulher que passa. É uma bênção, sermos abençoados pelo Sol. Mas a mulher tem de ter noção de quão abençoada é. Eis uma das missões do poeta.


O poeta está cá para cantar a mulher, a beleza da mulher. O poeta está cá para derrubar o capitalismo mas ao fazê-lo deve celebrar a mulher. O poeta não pode ter um discurso puramente político, puramente marxista ou anarquista social.


Olha o anjo que entrou. O poeta tem de falar aos anjos. O poeta tem de voltar à adolescência, quando falava de paz, amor e anjos. O poeta tem de ser a criança sábia. O poeta nada tem a ver com o primeiro-ministro nem com os poderes.


O poeta fala outra linguagem. O poeta anda sempre em demanda do Graal. O poeta não vive no mundo dos políticos nem dos empresários, nem dos financeiros, nem dos bolsistas.


O poeta torna-se naquele que é. O poeta é livre. O poeta quer a mulher livre. O poeta quer o homem livre. O poeta é a própria liberdade. O poeta quer a união sagrada.