Thursday, July 24, 2008

MÃO MORTA E MALDOROR NO RASCUNHO


11.05.2007 | Música | Entrevista
Maldoror é o novo «quarto de brinquedos» dos Mão Morta


A mais recente criação dos bracarenses Mão Morta estreia no Theatro Circo a 11 e 12 de Maio. O RASCUNHO foi falar com Adolfo Luxúria Canibal para aprender mais sobre Maldoror.




Os Mão Morta têm um novo espectáculo. Chama-se Maldoror e é directamente inspirado pela única peça literária de Isidore Ducasse, autor do século XIX que levou à estampa a vanguarda do surrealismo. A estreia acontece hoje, 11 de Maio, no Theatro Circo, em Braga. O Rascunho deu mãos com o sítio informativo ComUM e foi ouvir as apresentações da boca do próprio Adolfo Luxúria Canibal.

O livro, Os Cantos de Maldoror, foi publicado pela primeira vez completo em 1869. Assinava o dito Conde de Lautréamont. (Adolfo Luxúria Canibal escreve o prefácio da edição portuguesa da Quasi, de 2004, publicação que o próprio ‘impingiu’ a valter hugo mãe, na altura ainda à frente dos destinos da editora.) O machado é o do mal sobre o bem. O surrealismo literário, esse, instaurou-se meio século mais tarde.

O Theatro Circo continua amanhã, dia 12, com Maldoror, que viaja até Portalegre no próximo dia 19. O resto do país deve esperar até 2008. Postos de parte os formalismos, há que explicar as borboletas.

O centro histórico da Braga natal é mundo. Marcou-se tudo para o final da tarde na incontornável Brasileira. Carro encostado, não há como não recordar O Jardim: «A última vez estava frondoso/ A buganvília a tingir-se de vermelho/ Trepando O perfume inebriante/ E as festas ao cair da tarde/ Parece que foram há séculos/ Noutra encarnação». Porquê o Primavera de Destroços (2001), não se sabe. No meio de tantos… mas mal chega o café, volta: «a luz do sol a fraquejar no horizonte».
As citações ficam sempre no limbo. Para o brilharete ou para o ridículo de quem as põe pela boca fora. A verdade, é que há uma solarenga tarde bracarense e uma conversa agendada com um ícone da cultura daquela velha cidade, quase vinte anos depois do primeiro e homónimo Mão Morta (1988), dez anos depois de Müller no Hotel Hessischer Hof (1997) e três passados sobre o último suspiro em disco, Nus (2004). Não percamos tempo.



Há muita gente que não conhece Os Cantos [de Maldoror]. O que são Os Cantos e por que aparecem agora como um espectáculo dos Mão Morta?

Os Cantos aparecem agora porque são um livro de cabeceira nosso, meu, do Miguel Pedro e do Rafael há muito tempo. Eu li Os Cantos pela primeira vez tinha 16 anos. E portanto, é um livro que sempre nos influenciou porque sempre foi uma leitura constante, há sempre um recair, tal como um vício, um recair na releitura d’Os Cantos. Sempre esteve presente, de alguma forma, na composição dos Mão Morta, nas letras, no espírito, etc. De uma forma indirecta, às vezes com citações directas como no caso d’O Pai – que era um texto do Müller – mas de qualquer maneira tinha uma referência directa. E era uma ideia que, desde que fizemos o Müller no Hotel Hessischer Hof, o Miguel Pedro tinha, que era fazer um espectáculo sobre Os Cantos de Maldoror. Ideia essa a que sempre me opus porque achava irrializável. Achava que o livro era de tal maneira complexo e de tal maneira centrado numa linguagem essencialmente literária, que era muito difícil fazer essa transposição para um outro tipo de universo, como é o caso do espectáculo, da música, do teatro, ou coisa assim. Mas finalmente o Miguel conseguiu convencer-nos a todos «ok, vamos fazer Os Cantos», um bocado naquela «não temos dinheiro para fazer Cantos nenhuns, isso nunca vai ser realizável, mas está bem, dizemos que sim». O que é certo é que o Theatro Circo nos convidou para apresentar-mos um espectáculo, na altura para a sua abertura, e acabou por não ser para essa altura poque não tínhamos o espectáculo nem pouco mais ou menos delineado para essa altura, mas que foi sendo adiado. Seria o primeiro espectáculo que o Theatro iria produzir e nós propusemos este tal espectáculo sobre Os Cantos. O Theatro Circo aceitou, de maneira que a partir daí ficámos atados, tínhamos de fazer Os Cantos. Mas tal como eu previa e como sempre resisti ao Miguel, não foi fácil encontrar o mecanismo que permitisse a passagem do campo literário para o campo do palco. E demorámos nisso, e daí os nossos atrasos sucessivos. Demorámos nisso quase um ano, até encontrar um mecanismo tão simples como a ideia do quarto de brinquedo e a ideia da criança que brinca no quarto de brinquedo para desencadear todas as acções. Depois o desenrolar da condução do espectáculo foi normal, foi relativamente rápido e imediatamente ficámos de acordo em chamar colaboradores externos, nomeadamente o António Durães e entregar-lhe a parte da encenação, e depois os outros colaboradores foram surgindo naturalmente, também por mútuo acordo e quase como primeira escolha, com diversas vozes a irem de encontro à mesma pessoa. Lembro-me por exemplo da Cláudia [Ribeiro], que nós nem conhecíamos pessoalmente, conhecíamos o trabalho. Nós pensámos «eia, era bestial metermos nos figurinos a Cláudia» – conhecíamos o trabalho no Teatro São João – e fomos dizer isso ao Durães e ele «Ah! Tem piada, eu tinha exactamente pensado na Claúdia para os figurinos». Portanto, as vontades entrecruzavam-se assim, o que foi óptimo. Depois utilizamos pessoas que trabalham normalmente com os MM como o Nuno Tudela que trabalha em vídeo. Quando se tornou evidente que iríamos utilizar vídeo como outra linguagem, como a das vozes d’Os Cantos, tornou-se evidente que a pessoa que ia trabalhar no vídeo era o Nuno Tudela, porque é a pessoa que trabalha connosco desde 1993. Em termos de som e de luz também são as pessoas que trabalham connosco habitualmente o Antunes e o Nuno Couto.

Foi complicado juntar essa equipa?

Não foi complicado, não. O Pedro Tudela também era a pessoa que conhecíamos pessoalmente, já conhecíamos o trabalho dele para além do trabalho musical, de artista plástico, de cenografia, com a peça que ele tinha feito com o Durães, de maneira que também foi uma escolha óbvia. Isto para dizer como nos metemos n’Os Cantos.

Agora o livro, o livro em si, é uma pergunta de resposta difícil porque... Bom, Os Cantos, apesar da sua aparência imediata não são romance, nem são uma novela, nem são prosa – aquilo a que as pessoas estão habituadas a associar à prosa. Apesar da sua aparência de um épico clássico e o próprio nome, a designação de Cantos, remete para aí, ele tem efectivamente contornos épicos mas não tem nada a ver com clássico e tem como óptica uma óptica divertida uma vez que o herói é um herói do mal, não herói do bem. Depois é um livro que tem mais a ver com poesia do que com narrativa, porque não há uma narrativa. Há pedaços de narrativa que se interrompem, que de entre-chocam e que se desviam, que não levam a lado nenhum, que nos iludem, e isto tudo rodopia constantemente numa espécie de turbilhão constante e que às tantas a pessoa perde o pé dentro da narrativa. «Mas afinal quem está a falar? O que é que está a acontecer? Onde é que nós estamos?» – é a pergunta mais natural que o leitor faça quando se encontra a meio do próprio Canto primeiro. E essa pergunta vai ser repetida constantemente durante os seis cantos do livro.

Portanto não é um livro que seja fácil de resumir, é como pedir que se resuma um poema ou uma poesia moderna – não digo um poema tipo Lusíadas, que se pode resumir em três penadas –, mas um poema moderno, um poema curto que se alguém pedir para tentar resumir, mesmo que seja possível resumi-la em termos narrativos, esse resumo faz perder o poema, não é? O resumo deste livro faz perder o livro porque não é importante a história, a tal história do mal contra o bem ou da revolta contra a autoridade, todos os potenciais resumos que se podem fazer do livro fazem sempre perder o livro. Porque o livro é essencialmente a sua escrita, é a forma como a sua escrita se revela, é a forma como as frases criam algo de novo que não existe palpavelmente e não pode ser descrito de outra maneira a não ser na forma como eles a construíram. E é isso que é fascinante no livro.



Como é que os Mão Morta conseguiram roubar essa natureza para o espectáculo?

A ideia foi não cair na ratoeira do resumo, de contar uma história. Este livro é um apanhado de esboços de estórias, portanto o espectáculo tinha que ter essa característica. Se não tivesse corria o risco de ser uma dispersão enorme e de não ter pernas, nem tronco nem cabeça. Seria um farrapo a boiar no nada. Havia que dar unidade, uma coerência a esses farrapos. E aí o espaço fechado, o tal quarto de brinquedos idealizado que depois não é preciso que seja, mas que serviu para criar esta coerência em que as diversas vozes, as diversas erupções narrativas que nunca terminam pudessem encontrar um ponto comum, um ponto de contacto que desse uma unidade ao espectáculo. E depois, por outro lado, insistir num ambiente de certo modo gótico, de romance gótico, que está muito presente no livro – vampiresco, que tinha a ver um bocado com o brincar com o que estava em voga no séc. XIX, que era o romantismo e as estórias góticas e de cemitérios e de vampiros, e ele brinca com tudo isso para tornar rizível. Este ambiente é importante no livro, é dado pela própria frase, não tanto pelas discrições como faziam os românticos, mas pelas próprias frases, pela própria introdução de pedaços dentro do livro, da própria escrita. Nós tentámos encontrar alguns pedaços do livro que cujo conjunto pudesse dar este ambiente e fazer o espectador mergulhar no ambiente do livro – neste ambiente estranho e ao mesmo tempo pelo lado do distanciamento que existe constantemente no livro em que é o narrador, quando não é próprio autor, a interferir na história «Atenção, isto é um livro. Não levem isto a sério, tenham calma. Vocês são leitores, não passais de leitores. Eu estou a inventar, isto é a minha mente que provoca, não é verdade». E a partir daqui parte para outra estória que parece verdade e que mete medo, em que as pessoas ficam envolvidas. E quando estão envolvidas «Calma, isto sou eu que escrevo. Nada disto tem a ver. Mas se quiserem verificar vão ao telhado da rua não-sei-quantos no número não-sei-que-mais.» Este brincar constante nós também quisemos aproveitar.

No prefácio que escreveu para a edição d’Os Cantos na Quasi, fala num ambiente de constante vigília, o realismo deformado, o estilo compacto, poderoso, o ritmo desenfreado, frenético, o ambiente de heresia, de transgressão – palavras suas. Como é que se põe isto a respirar num palco?

Nós andámos um ano assim, a tentar perceber como é que isso iria respirar. A questão é exactamente essa: como é que pôr isso num palco? É tudo dado por matéria literária e como é que isso depois passa para o palco? Essa era a nossa grande questão. A resolução que fizemos foi pegar em excertos escolhidos, que tivessem esse tipo de envolvência, e que ao mesmo tempo criassem uma desorientação, mas não uma tão grande que o espectáculo ficasse estilhaçado. Mas que ao mesmo tempo criasse os estilhaços na cabeça do espectador, para que esse lado de turbilhão – «onde estou?», «quem está a falar?», «como é que ele passou de um assunto para o outro?» – estivesse sempre a fervilhar. Espero que tenhamos conseguido, mas isso só a apresentação final é que vai dizer.




Quando o Miguel Pedro queria muito fazer Os Cantos era para dar a conhecê-los ou era tão intrínseco o livro que tinha mesmo de ser?

É evidente que se o espectáculo provocar novos leitores a’Os Cantos nós ficamos muito contentes e ficamos realizadíssimos. Mas o que nos fez partir para Os Cantos, e para trabalhar nos Cantos não foi isso. Sobretudo o que nos fez partir para Os Cantos ultrapassado o medo e deixada toda a angústia que o Müller no Hotel Hessischer Hof nos provocou, e dez anos foram suficientes para deixarem na memória apenas os lados mais radiosos dessa aventura que foi o Müller e os lados mais angustiantes ficaram escondidos, ficaram sem dor, esquecido isso, o que nos fez partir para esta aventura é exactamente esse lado de aventura, este correr o risco, este desafio de fazer algo que para nós é novo. «Como é que a gente se vai desenvencilhar desta encrenca onde nos metemos?», quer dizer, até que ponto vamos conseguir, até que ponto a gente não se vai enterrar todos.

O que mais o entusiasma na obra de Isidore Ducasse?

O grande entusiasmo na obra de Isidore Ducasse, para além da delícia da leitura, que é efectivamente algo de interessante, uma pessoa alheando-se – porque há muita leitura que a pessoa lê mas para querer saber o que é que acontece a seguir – aqui uma pessoa alheia-se disso, é a delícia de ler, a escrita é fabulosa. Mas para além disso é a delícia também da descoberta porque são leituras sucessivas em que se descobrem sempre coisas novas. Há muito de descoberta no Isidore Ducasse, e é este lado que na leitura anterior estava oculto e que na leitura seguinte surge à luz do dia, este lado de descoberta é fascinante. O livro pode suportar tantas leituras e continuar sempre diferente, é algo de mágico e é essa magia que é muito importante do Isidore Ducasse.

O que o mantém actual, quase século e meio depois de ter sido publicado?

Este livro serviu de referência a todas as vanguardas e a todos os undergrounds do séc. XX. Ultrapassou todo um século a dar pistas de inspiração literária e cultural, e mesmo musical e teatral, etc, a todo um século. É incrível, não é? Não há nenhum livro que tenha feito isso, quer dizer há autores importantíssimos o Rimbaud, a par do Isidore Ducasse foi um dos pilares, uma das portas de abertura do moderno na literatura, foi quando a modernidade entrou na literatura. Mas o Rimbaud não teve esta influência marcante de estar constantemente a ser redescoberto e a abrir novas vias, o que teve o Isidore Ducasse com um único livro.

Ducasse teve influência em mais trabalhos dos Mão Morta? Estou a pensar na escrita automática…

A escrita automática foi depois explorada pelos surrealistas. O Nus vai buscar posteriores muito influenciados por Ducasse, mas também pelos surrealistas, que foram os beat – nomeadamente ao poema Uivo, o poema que torna público o movimento beat, que é escrito em jactância –, e vai buscar essa jactância e essa associação rápida de frases, de linhas, de poema. Vai buscá-la exactamente a esse tipo de escrita, que tinha a ver com a escrita desenvolvida pelos surrealistas, que por sua vez tinha a ver com a apresentada pelo Ducasse n’Os Cantos de Maldoror. Tudo se interliga.

Como surgiu o nome de António Durães para tratar da encenação?

Quando tivemos o click de como iríamos transpor do campo literário para um outro, de uma coisa tinha a certeza: não iria ocupar-me da encenação, como tinha feito no Müller no Hotel Hessischer Hof. Achava que não estava nas minhas capacidades. Tinha sido um milagre ter corrido bem no Müller, um milagre intuitivo. Não é a minha área, não tenho técnica nem conhecimento suficiente para trabalhar a encenação. Felizmente correu bem no Müller, mas não era uma experiência para arriscar. O mais certo é que corresse mal. A ideia era «vamos utilizar um encenador». E o nome do António Durães apareceu de imediato – nem sequer foi preciso pensar. Por um lado, conhecíamo-lo pessoalmente, por outro conhecíamos o trabalho dele, era uma pessoa que estava disponível… só restava saber se tinha tempo. Mal o contactámos ele disse logo que sim e ficou desde o princípio com a responsabilidade total da encenação.

O Miguel Pedro criou um blogue [o intelectual do grupo], que pretendia ser um diário de bordo dos Mão Morta a caminho d’Os Cantos. Os fãs consideram uma óptima iniciativa, mas outros elementos do grupo não o acharam benéfico.

Sou o responsável pelo blogue ter ido ao ar. Uma coisa na Internet pode ser interessante se houver matéria para apresentar, se criar discussão. O que reparo é que não havia assuntos. O Miguel, para manter aquilo com matéria, já estava a meter não-importa-o-quê lá para dentro – imagens que não tinham nada a ver com Os Cantos, private jokes que não têm interesse nenhum para divulgação pública… como dizer que eu uso cuecas cor-de-rosa! Não tem interesse absolutamente nenhum. Aquilo deveria ser um espaço de reflexão, mas para isso era preciso tempo, em que uma pessoa deixasse transparecer para o blogue o que é que lhe passava pela cabeça, porquê esta opção ou a outra. Ninguém tinha esse tempo. Ali não havia reflexões, havia informação pura, diminuta, e muitas coisas para encher. Lixo já há muito na net. Não vale a pena andar a enganar as pessoas, a nós próprios, e a contribuir para a lixeira.




'The Love Bite', de Laurie Lipton, imagem que ocupa a capa da edição da Quasi d'Os Cantos de Maldoror (2004)


Houve alguma preocupação do Theatro Circo, ou da Câmara Municipal, com o regresso dos Mão Morta àquele palco? Lembrando o destrutivo espectáculo já do outro século.

Nós já fomos ao Theatro Circo aí umas dez vezes. Em concertos próprios, umas quatro ou cinco vezes, e em concertos colectivos outras tantas. Houve uma vez um concerto que, com condições particulares, provocou estragos consideráveis na sala. Mas foi uma vez em dez. Depois dessa vez já fomos três ou quatro vezes e nunca mais aconteceu nada. Já lá levámos o Müller depois disso e a coisa correu lindamente. Sabendo nós as características da sala, que o espectáculo é feito para salas com essas características, tendo já levado várias vezes a outro tipo de salas com estas características – isto é, lugares sentados – outros espectáculos, não há razão nenhuma para fazer um papão de sete cabeças pelo facto e em 1993 ter havido destruição da sala, quando a sala estava cheia à pinha com adolescentes de 14 anos e 12. Foi uma coisa especial e que, não com tanta gravidade, mas era uma destruição que tinha acontecido, também com o mesmo tipo de público, uns meses antes com os GNR e eles não são acusados de destruírem a sala. Só nós é que ficámos crismados com esse evento.

Por falar em adolescentes de 14 anos – o Ducasse dizia que Os Cantos eram para eles…

Eu comecei a ler Ducasse sensivelmente com essa idade e senti-me muito contente com isso. Ducasse diz, precisamente, que gostaria que a sua poesia fosse compreendida pelas meninas de 14 anos… [risos] Eu era menino – e sou – mas a idade coincidia.

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