Thursday, July 17, 2008

O MEU CORPO


O meu corpo,
despudoradamente à deriva
suado de carícias ao largo da ilha de vieques
o meu saco cor de areia as fotografias polaroid
os teus cadernos de capa dura as gambas grelhadas.
Fuck you jack, fuck you gritaste distante e fria
em central park oeste e em riverside drive
por mil dólares escreveste
oh yeah love you so much dear, oh yeah!
o meu corpo,
por entre poeira e ruínas em siracusa e em santorino
com tanta sede e james brown tanta fome e la isla bonita
tomou o teu corpo mostarda em lume brando
à sombra da velha magnólia
e doravante só bebemos chá verde
aborrecemo-nos e amámo-nos
olhámos as cartas e os postais ilustrados
e com gestos feios rasgámos tudo
recebemos os créditos e gastámos tudo
mas prometemos amar os líquidos intensamente,
rios e fontes mares e lagos, poças e charcos
– até o lodo e a lama –
peixes e algas o plâncton
e o vento
e em são diego na velha casa do teu avô paterno
disseste nice to be with you
o teu corpo
à margem da lei embarcámos num avião para a guiana
seduzimos um ou dois estranhos louros ou magenta
e adorámos as auroras as romãs e os cravos
mas
estávamos presos da tua boca cheia de grandes sexos
os meus olhos cheios da tua boca
com nódoas de guacho e manchas de sumo de maré vazia
e um nevoeiro azulado entrou pelo nosso quarto
misturando odores
a primavera entrou na nossa casa
e nunca a recusámos a um estrangeiro
até que um dia partiram todos
e o mar ficou tingido de púrpura
e nós também partimos
e voltámos por outro caminho
outro oceano
mais calmos intransigentes.
O meu corpo,
deitei o meu corpo no teu jardim constelação de nomes
sobre os espinhos de uma roseira
e permaneci imóvel por um ano
e tu serviste-me café com leite e biscoitos
they’ll buy my story disseste
a tua história kinky e a minha arte fauve
e rejubilei com a tua história
plena de sórdidos detalhes
very kinky indeed
e partimos logo a seguir para a ilha de elba
onde tinham nascido crianças muito ruivas
ouvimos tiros e dançámos
nas frias noites de outubro
molhados em leite de cabra e genebra
tu fizeste amor com ícaro orfeu orestes
com todos os deuses
eu dormia todas as sestas
com desenhos por acabar e uma caixa de aguarelas sennelier
e quando chegaram políticos para uma reunião tu coraste
alugámos um barco com mestre de navegação e vela
e zarpámos rumo ao arco-íris
o inverno era já no dia seguinte
queríamos
passá-lo entre cores nunca entre corpos
e beijámo-nos na porta do chemical bank.
Love you so much! disseste
e compraste-me – thanks disse eu –
um pacote de cigarros king size e duas laranjas
rodopiámos toda a noite entre nuvens de algodão e água pura
e perseguiste lesta algumas cores do céu
o amarelo o azul e o branco
e descoloriste o céu
sentada na balaustrada da casa que alugámos na praia espanhola
não mintas, eu vi.
O mar ao largo rugindo a embalar meridianos e trópicos
tínhamos no colo um gato e uma mulher adormecida
e não sabíamos que fazer com ele com ela
quando, atrevida, uma ave te roçou pelo rosto a fina plumagem
tu disseste enough vamos falar outra língua
aqui as mulheres fazem amor com as estrelas
e eu disse enough aqui não há estrelas
e as mulheres com mamilos claros são peixes dourados
em aquários de plástico
e queríamos morrer nessa tarde e ressuscitar mais tarde
noutro dia qualquer nesse em que
lias um poema fascinada
eu era todo gargalhadas e mergulhámos no oceano morno
havia uma grande ânfora com muitas fotografias
com detalhes muito belos
o meu cabelo os teus lábios a tua ansiedade
a minha preguiça nós
uma velha moldura portátil com o retrato dos teus filhos
um bilhete de comboio usado
e escreveste uma novela em duas horas e meia
eu assobiei de espanto
e era o fim do mundo mas encolhemos os ombros
então já tinhas redigido um diário
a partir do dia da nossa morte
e vivemos por minutos numa cidade onde fomos comprar tinta preta
e as ruas do sítio encheram-se do nosso suor perfumado... boreal.
O meu corpo, sempre o meu corpo,
coxas de frango assado foram o meu jantar e o meu almoço
torradas o meu pequeno-almoço e todas as refeições
e assim correram os dias
enquanto
não te libertavam na cidade
e quando regressaste finalmente
eu tinha já confeccionado uma dezena de pudins instantâneos
e celebrámos em festa
estávamos nus e fomos aplaudidos
por homens e mulheres muito belas
que apreciaram o meu e o teu corpo
e nos mordiscaram as nádegas o peito e as mãos.
Adoravam estranhos deuses paradoxais
eleitos por sufrágio universal
e não provaram os nossos sexos
porque não tinham aprendido o sabor das tempestades
e publicaram tudo nos jornais do dia seguinte.
Disgusting disseste
e nessa madrugada recebi várias revistas por assinatura
e um bandolim
não nos beijávamos há dias eu deambulava
em tons de rosa ébrio disfarçado de mosca varejeira
tu cosias toalhas numeradas de um a três milhões
para embrulhar o amor disseste
para emparedar o desespero oh it’s so great disseste
e fomos arrastados por uma vagina cega
com lábios de borracha
por caminhos desconhecidos, montanhas vales e desertos
parámos nas margens de um rio grande muito grande
entre el paso e laredo
tu construiste uma torre de londres e eu uma de belém
e sob um calor tórrido uma rapariga índia muito magra ofereceu-nos figos de piteira e chapéus de palha
não nos amávamos nesses dias mas ensaiámos
nos degraus da escada da grande mansão abandonada
tu descobrias o seio esquerdo redondo cheio muito branco
ela molhava o teu vestido florido com iogurte artesanal
tu acariciavas-me
ela soltava gargalhadas finas eu olhava o tempo
e radiantes entrávamos e saíamos da idade adulta
com a mesma ligeireza
com que percorríamos o mundo dos crisântemos
dos narcisos e dos asfaltos
loucos por sermos e brincarmos tanto
com skates de baquelite e papagaios de papel
it’s over então disseste
o meu corpo,
e num saco cheio de chuva e diamantes
a poesia voltou
com palavras menos céleres
eu tinha terminado alguns desenhos de girassóis
crescendo sorrateiramente
e tu consagraste até uma pequena história
à escultural rebeldia do meu pénis
jónico ou dórico ou algo assim disseste
god bless you
eu recolhia os lápis era meia-noite
nem cinzas esvoaçaram ao vento nem estávamos extintos
e no entanto os cheques fluíram tínhamos novos amantes
ainda mais belos
muitos cigarros as tuas canetas a tinta negra
as fotografias polaroid e a moldura
o meu saco as tuas toalhas
eu ancorado na tua lua lugar galáxia
loved you so much disseste.

E o nosso mundo tinha acabado entretanto
tínhamos encolhido os ombros
enfim a terra inteira era o mar mediterrânico
ardendo em labaredas tépidas
o gato estava ao meu colo e a mulher no teu
e do outro lado dos binóculos gigantes
neptuno estava vestido de púrpura
talvez em santorino em siracusa ou em vieques
abraçados os três.

Adios baby!

Manuel Rialto, 1988

in FRENESI

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