Friday, October 14, 2011

DOS FILMES


Contudo, para lá da depressão, João tinha fases de mania. O pensamemento acelerava, a palavra libertava-se, era capaz de falar durante horas sobre vários assuntos, julgava-se capaz de mil e uma coisas. Contrariamente ao que dizem muitos psiquiatras e psicólogos, a fase da mania não é necessariamente nociva. João escreveu grandes poemas como "Bailarino", "Big Trip, Big Sleep", "A Arder", nesse estado. E quando dizia poemas nos bares, como no Púcaros ou no Pinguim, transfigurava-se. Mas, apesar de ter sido jornalista e de ter tido outros empregos, o poeta nunca se adaptou verdadeiramente à vida do trabalho. Sempre teve dificuldade em ter horários, em aceitar os chefes, excepto o Artur Queiroz. No fundo, não obstante gostar de ser jornalista, nunca entendeu muito bem essa lógica de ter de troca trabalho por dinheiro. João tinha feito o percurso da dádiva, da antiga liberdade. Outra vez Morrison, Nietzsche, também Henry Miller. Para o poeta, a vida valia por si mesma, só fazia sentido enquanto descoberta, enquanto procura de um ideal de beleza, de um conhecimento. As suas iluminações, delírios e alucinações iam de encontro a isso. O artista sentia-se um médium, sentia-se até Deus a rebolar no jardim e a decidir da vida e da morte das pessoas. Fica possesso, ora incarna o ódio ou o amor. Quando é amor une os céus, ressuscita as pessoas. Quando é ódio põe tudo a arder, como Nero em Roma. É também Hamlet de Shakespeare. Quando o pai morreu, ouvia a sua voz. Ouvia várias vozes. Exércitos que o perseguiam, exércitos que o protegiam. Vinha sempre a ideia de revolução, da tomada de Lisboa, de mensagens que lhe chegavam. Havia fogo, mortes, no entanto, no fim era a redenção, o amor triunfava. O poeta torna-se profeta, um revolucionário místico. Contudo, depois as vozes voltavam, João atirava-se para o chão, pensava que tinha a casa cercada, que tinha sido traído, que tinha perdido a guerra. Depois voltava para o psiquiatra. Foi assim, várias vezes.
Em 2001, estava com a Paula em Braga, era Páscoa, assistiram à Procissão do Enterro do Senhor. João viu Jesus na cruz e não aguentou. Viu um revolucionário no tasco a pregar a revolução, graffitis subversivos na parede. Paula não entende e chama-o. Mas ele vê-se rodeado de anões e duendes que o acusam de traição. O poeta vive isso tudo, não imagina. Paula levou-o para casa mas as vozes não deixavam de o apoquentar. Durante vários dias.
Em Agosto de 2006, foi ao Festival de Paredes de Coura dizer poesia, ao lado de Adolfo Luxúria Canibal e de Isaque Ferreira. A sua actuação no Centro Cultural talvez tenha sido a melhor da sua vida. Disse Jim Morrison e a "Declaração de Amor ao Primeiro-Ministro". Falou da infância, de Deus e da mãe. Falou do puto puro que tinha sido e dos vícios que tinha adquiridio duma forma arrebatada, extática. O público veio abaixo, ria, entrava em diálogo, ovacionou. Depois, nessa noite, foi ver os Cramps e os Bauhaus com a Ana. No meio da multidão, voltou a ouvir vozes, pensava que chamavam pelo seu nome, que falavam de si. Alguns naturalmente até o comentariam mas nunca poderia ser tanta gente. Estavam 500 no Centro Cultural, no recinto do Festival estariam 30 000. E ele não era o Peter Murphy. Ana falava com João, tentava-o despertar mas este estava para lá. Entre os deuses. No Tennesse. Quando chegou a casa desfez-me em lágrimas, julgava que tinha insultado a mãe em público. Uns dias depois, após uma boleia de uma amiga, foi da Póvoa a Vila do Conde a pé e desatou a partir os vidros dos carros de maior cilindrada. Julgava-se em Paris a fazer a revolução. Alguém viu, foi interceptado por um polícia à paisana e conduzido à esquadra. O caso foi arquivido. Já antes tinha apedrejado a Junta de Freguesia e várias montras. Voltou a fazê-lo. Acredita numa revolução como a grega.
Em 2003, foi acusado de deitar abaixo a estátua do major Mota na rua da Junqueira na Póvoa de Varzim. O major foi presidente da Câmara na época do salazarismo e Comandante da Legião Portuguesa. João, dias antes da inauguração da estátua, distribuiu panfletos à população em defesa do 25 de Abril e contra o fascismo, tudo em nome de uma Frente Guevarista Libertária. Três meses depois, a estátua caiu. O poeta e a Frente foram acusados. Saiu nos jornais locais e nacionais. Meses depois, João foi interrogado pela Polícia Judiciária. Não havia provas. Há quem diga que foi o camião do lixo que deitou a estátua abaixo. Uns anos a seguir, uns putos voltam a partir a estátua.

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