Tuesday, September 30, 2008
ARQUÍLOCO
Arquíloco
---Por Celina F. Lage
fr. 1 W
Eu sou servidor do senhor Enyálios
e conhecedor do amável dom das Musas
fr. 3. W
Certamente não muitos arcos serão armados, nem sucessivas
fundas, quando Ares conduzir o combate
na planície. Será origem de muitos gemidos a obra das espadas,
pois deste tipo de luta são conhecedores aqueles
soberanos da Eubéia, famosos por suas lanças.
fr. 16 W
A Fortuna e o Destino, ó Péricles, dão tudo ao homem
fr. 120 W
Para iniciar o belo canto do senhor Dionysos
sei o ditirambo, eu que tenho a mente fulminada pelo vinho.
fr. 177 W
Ó Zeus, pai Zeus, é teu o império do céu.
Entretanto, tu tens os olhos sobre as ações criminosas
e corretas dos homens e a ti preocupa
tanto o excesso quanto a justiça das bestas.
fr. 191W
Tal desejo de amor, revolvendo no fundo do coração,
muita névoa sobre os olhos difunde,
arrebatando do peito as ternas entranhas.
---Por Teodoro R. Assunção
fr. 2 W
na lança meu pão amassado, na lança o vinho
Ismárico: bebo na lança inclinado
fr. 5 W
Um Saio alegra-se com o escudo que, junto a um matagal,
arma irrepreensivel, deixei não querendo.
Mas salvei a mim próprio! Que me importa aquele escudo?
Que suma! de novo comprarei um não pior
---Por Maria Olívia Q. Saraiva
fr. 8 W
Esimides! preocupando-se com a censura do povo,
ninguém experimentaria mesmo muito de agradável.
fr. 11 W
Pois, nem irei remediar algo chorando, nem pior
irei torná-lo seguindo prazeres e festas.
fr. 13 W
Zombando do lastimável luto, ó Péricles, nenhum cidadão
Se alegrará com festas, nem a cidade;
É que, àqueles, uma onda do ruidoso mar
levou e inchado de dor temos o
pulmão. Os deuses, porém, para males incuráveis,
ó amigo, a poderosa resistência deram como
remédio. Ora um ora outro tem este mal; agora para nós
voltou-se, gememos por uma sangrenta ferida,
e logo a outros sucederá. O mais rápido possível
resisti, afastando o choro próprio de mulheres.
fr. 14 W
Glauco, um homem mercenário é amigo só enquanto luta.
fr. 134 W
Pois não é nobre injuriar aos homens que morrem.
DIÁRIO
Tremo ao pegar na chávena de café. A funcionária até ficou assustada. Estou de regresso à Faculdade de Letras. Depois dos UHF cá estou eu. E a menina bonita que estava a um canto a ler o jornal já se foi. Já não conheço ninguém. Nem sei se aqui já começaram as aulas. Sinto-me verdadeiramente na Grécia Antiga. Entre filósofos e poetas a dialogar. Havia escravos mas agora também os há. Este apelo à não-razão que eu faço já Platão via nos poetas- "pois estão fora da sua razão- mas é a própria divindade que fala e que se faz ouvir através deles". A divindade está nos poetas e nos declamadores. A divindade está em mim, cara amiga. Nem sempre, claro. A divindade, se nada mais me restar, a divindade. Loucos divinos, eis o que somos. Loucos divinos.
PLATÃO, ÍON
Falam Sócrates e Íon
Todos os poetas épicos, os bons poetas, não é por efeito de uma arte, mas porque são inspirados e possuídos, que eles compõem todos esses belos poemas; e, igualmente, os bons poetas líricos, (...) não dançam senão quando não estão em si, também os poetas líricos não estão em si quando compõem esses belos poemas; mas, logo que entram na harmonia e no ritmo, são transformados e possuídos como as bacantes que, quando estão possuídas, bebem nos rios o leite e o mel mas não quando estão na sua razão, e é assim a alma dos poetas líricos.
O poeta é uma coisa leve, alada, sagrada e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão. Enquanto não receber este dom divino, nenhum ser humano é capaz de fazer versos ou de proferir óraculos.
Sunday, September 28, 2008
HAKIM BEY
A Arquitectonalidade da Psicogeografia ou os Hieróglifos da Deriva
(in memorian Guy Debord)
*Hakim Bey
[english]
Obscuras & misteriosas grutas nas quais eles entram, imitando serpentes - espaços de regresso a uma intimidade que "há muito, muito tempo" foi estilhaçada pela memória - pela simultânea reiteração & lentidão da memória - essa faculdade da consciência humana "próxima do divino". Mas não se diz que "perdoar é humano, esquecer é divino"? Na reiteração ritual ou na lembrança (dhikr)1 dos sufis, esquece-se o "eu" precisamente para anular o Eu; - deste modo re-lembrar é anular a separação, e este apagamento é uma espécie de esquecimento. (Em certos edifícios chave Islâmicos, como o Alhambra, a reiteração do dhikr como texto caligramático, torna-se na própria definição do espaço construído como um dispositivo mnemónico ou "Palácio da Memória" - não ornamento, mas a própria base ou o princípio-da-precipitação-dos-cristais da arquitectura.)
"Desde que nós somos Jesus Cristo" como anunciou um dos Irmãos do celebrado livre Espírito, "a única questão é que aquilo que já é perfeito em nós, deve ser reiterado...". Este processo, todavia, conduz a uma paradoxal des-aprendizagem - e por isso à perda do medo – assim, uma pessoa pode "deixar-se conduzir pelos seus sentidos, como uma criança". Assim, a caverna representa a inconsciência; - o objectivo, contudo, não é perder a inconsciência mas recapturar aquilo de que a inconsciência nos separou, aquilo que a consciência "deturpou". Deste modo, dentro da própria gruta negra da memória, devem ser paradoxalmente inscritos - imagens-chave são reiteradas (literalmente repetidas em alguns casos como num palimpsesto ou por incisivos desenhos sobrepostos) - imagens que representam perda de intimidade, como um panteão de animais ("com os quais é bom pensar")2 - cada animal uma graça especial ou uma função "divina". Assim, a caverna torna-se no primeiro espaço arquitectónico intencional, a intersecção da inconsciência (a beatitude da "Natureza") & consciência (memória, reiteração).
Desde Platão, fomos ensinados a venerar a anamnese - mas recuemos à caverna pré-Platónica, a gruta paleolítica, para recuperar a dialéctica positiva da amnésia - sem a qual a memória se torna simplesmente numa maldição, coagulando por fim como História (o grau zero da memória como asfixia): a primeira cidade (Çatalk Hüyük) já se estrutura em grelha, a própria antítese da estética da gruta disforme, com os seus meandros & espaços extraordinários, estalactites & estalagmites fundidas - a sua organicidade (que se expressa em todo o caso como vida mineral). As cidades de Sumer & Harapa que foram igualmente delineadas como grelhas rígidas, abstracções cruéis de linearidade. Desenhar uma linha é separar, criar uma hierarquia espacial (entre sacerdote & povo, ricos & pobres, excesso & excassez) e para definir o topia da memória contra o obscuro inconsciente da tribo, a caverna utópica, a organicidade selvagem. Aqui, o tertium quid ou coincidentia oppositorium (entre "gruta" & Babilónia) pode aparecer na cidade medieval (que sobrevive ainda em alguns lugares do mundo Islâmico) onde a excessiva crueldade da grelha é apaziguada - não apagada, mas atenuada - pelo registo de um espaço em consonância com o modelo de uma árvore ou do delta de um rio (caótica bifurcação oscilando com complexidade baseada em "atractores estranhos" 3 intra-dimensionais) – um urbanismo do orgânico, da estética, & do complexo ou plural (por oposição ao inorgânico, ideológico, & simples ou total).
A cidade medieval é uma gruta por extrusão. Algumas destas cidades introduziram sumptuosos cortejos alegóricos ou paradas, nas quais grandes complexos de símbolos (composições de hieróglifos) eram construídos & dispostos ou transportados pelo labirinto de ruas. Mitos & lendas eram encenadas - por vezes o Senhor Feudal desempenhava o papel de "Senhor Feudal", vagueando por um palco de ruas, com personagens simbólicas (como Bloom em Nighttown), renovando assim a Cidade como o seu Herói de eleição, submetido à iniciação do casamento ritual com a deusa urbana.
Aqui a Cidade Livre adquire uma consciência sincrónica & lúdica de si mesma hic et nunc, em vez de sucumbir ao diacronismo miserabilista da violência do poder. Nesta Cidade Hermética encontramos o passado/a origem ou o ventre materno dos Livros Simbólicos alquímicos, e a narratividade de um Bosch ou Breughel. Aqui, a memória perde o seu peso & assume um aspecto folclórico, carnavalesco (o festival como reiteração do prazer) com formas construídas que se apropriam (através do desenho ou através dos acidentes de declínio & acreção) das formas de seios, falos, ventres, pedras & água, musgo & flores, até de água & luz.
A cidade-grelha babilónica quer que a memória persista através dos tempos - tempo suave & vazio - mas como mostrou Dali, a memória persiste apenas na deliquescência do tempo medido. A cidade medieval - hermética (como a Green Jerusalém de Blake) preserva a memória mas de uma forma "desordenada" - como compota akashic4 - tempo que é texturado & cheio. "Babilónia" preserva a ordem (ou algo mais) - mas o que acontece aí à memória? Não foi transmutada no venenoso formaldeído da História, o re-iterado da nossa pobreza & do poder deles, mito taxinómico da classe dirigente?
Quem nos pode criticar por albergarmos quer um desejo de insurreição & nostalgia das estreitas e ventosas alamedas, escadas sombrias, ruas cobertas & túneis, estrumeiras & adegas de uma cidade que se projectou a si própria - organicamente, incoscientemente – numa estética de festiva & secreta convivialidade, & da curvilínea mutabilidade neguentrópica da própria memória?
O urbanismo psíquico dos anos 60 constituiu uma outra tentativa de recuperaração da memória construída para este projecto "Romântico" - rus in urbe – como enunciou F. Law Olmstead - "O campo na cidade" – a reintrodução do eterno "barroco" (como na "pérola barroca") 5 ou forma espontânea - (como as miraculosas grutas fungiformes de cinábrio do Taoísmo Mao Shan, criadas pela energia Imaginal do Perito - que é também a "divina" espontaneidade, inconsciência & esquecimento da natureza. Um projecto para os construtores de uma No Go Zone6 do futuro próximo: - a cidade da resistência psicogeográfica, da anti-grelha, da arquitectonalidade da deriva, o espaço de festa - e a Caverna da Memória Fluída. Pedra & água - o devaneio do bardo, o esquecimento dos deuses.
Notas:
1 O “chamamento”; a invocação do nome de Deus; em algumas confrarias misticas, prática ritual de busca colectiva do extase. (N.T.)
2 Ver Levi-Strauss, O Totemismo Hoje, Perspectivas do Homem/Edições 70, Lisboa (p.114): “Compreende-se enfim que as espécies naturais não são escolhidas (como tótemes) por serem ‘boas para comer’ mas porque são ‘boas pra pensar’.” (N.T.)
3 No estudodos sistema dinâmicos um atractor é um ponto, curva ou espaço para onde todas as trajectórias são conduzidas. Um atractor estranho é um atractor sobre o qual as trajectórias vizinhas divergem uma da outra e que tem dimensão fractal. (N.T.)
4 Akashic tem origem no Sânscrito akasa que se refere a uma essência indeterminada como espaço ou etér. Na teosofia refere-se a um sistema de armazenamento universal que regista qualquer pensamento, palavra ou acção que ocorreu desde o inicio do universo. Os registos são feitos numa substância, designada por akasha ou éter sonoro. A palavra akasha tem origem em duas palavras tibetanas: aka, espaço ou lugar de armazenamento e sa-ski, secreto ou oculto. (N.T.)
5 Tipo de pérola com forma irregular. (N.T.)
6 Ver: http://www.hermetic.com/bey/nogozone.html (N.T.)
*Hakim Bey é terrorista poético, anarquista ontológico e filósofo.
Tradução de Duarte Soares Lema e Sofia Pereira da Silva
POESIA, FILOSOFIA E GAJAS BONITAS
Custa-me ter conversas materialistas. Custa-me falar do que isto custa e do que aquilo custa. Cada vez estou mais longe disso. Estou a ficar num mundo à parte. Sobram os teus olhos. Se não fosse a beleza das mulheres ficava completamente fora deste mundo. Não sei ganhar dinheiro. Não me tenho importado com isso. Acho simplesmente ridículo um gajo andar atrás do dinheiro. Andar atrás de uma gaja ainda ando. Andar atrás de uma bola, jamais. Reconheço que, às vezes, também eu ando atrás do dinheiro mas isso é algo que não me motiva. O que me motiva é andar atrás da criação, da arte, da sabedoria e...das mulheres. Tudo o resto me parece secundário. Essa coisa do trabalho, do esforço, do lutar pela sobrevivência, não me diz respeito. Sabes, estou a ficar um verdadeiro anarquista. Mas um anarquista individualista: não acredito no trabalho colectivo, não acredito nas sociedades ideais, não acredito nas lutas parciais, não acredito na militância. Acredito no grito maldito, acredito na criação, acredito na rebelião mas também nas gajas bonitas. As gajas bonitas têm, mesmo que reprimido pela ideologia dominante, aquele jeito dionísiaco das bacantes, de dançar a noite toda. É preciso derrubar o capitalismo e o Estado! Não mais repressão, não mais polícias, não mais controleiros, não mais exploração, não mais dinheiro, não mais trabalho, não mais tédio! Só poesia, filosofia e gajas bonitas. Eis a nova máxima. Estou a falar do amor, do amor, do amor, love, love, love, love...pega na tua amiga e ama-a!
Friday, September 26, 2008
JORNAIS
Esta merda de aparecer nos jornais, sabes, ficamos convencidos de que somos umas estrelas mas depois passa um mês ou dois e já toda a gente se esqueceu de nós ou então a coisa começa a subir e armamo-nos em vedetas em primas donas e queremos o mundo a nossos pés e queremos todas as gajas boas e bonitas e depois acabamos por perder tudo esta merda de aparecer nos jornais, sabes, já vi o filme e já tenho visto tantos filmes que já nem sei onde me devo situar, sabes, um gajo começa a sentir-se em cima, realmente em cima convencido de que é capaz de tudo convencido de que vai amar os amigos e derrotar os inimigos convencido de que de agora em diante vai ser o paraíso e depois a coisa cai-nos em cima, sabes, cai-nos realmente em cima e não sabemos onde vamos parar, sabes, esta merda de aparecer nos jornais e de pensar que os jornalistas nos adoram e que andam sempre atrás de nós e que toda a gente nos adora, admira e respeita e que as pessoas olham para nós, sabes, é tudo uma ilusão, sabes, quando há alguém que se preocupa connosco e que diz para não ir por aí esse alguém tem alguma razão esta merda de aparecer nos jornais e de te sentires absolutamente livre e de seres o artista que faz tudo o que quer, sabes, isso é muito bonito isso é tão puro e bonito como a mulher que amas que realmente amas e que espera por ti estejas onde estiveres, sabes, quando começas a ver o mundo com outros olhos quando começas a ver a beleza que há nos olhos delas isso é muito bonito e tens razão em te sentires tão em cima e já não pensas só nas mamas nem dás tanta importância ao que sai nos jornais.
Pátio, 26.9.2008
AS GAJAS, AS MAMAS
As gajas
as mamas
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
que saem
que saltam
que te põem
cheio de tesão
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
que balançam
que tremem
à frente
dos teus olhos
que te põem doido
completamente doido
fora de controle
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
no metro
na rua
em todo o lado
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
coisa divina
absolutamente divina
apetece chupá-las
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
fico sem controle
vou ter um ataque
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
as gajas
as mamas
supremo deleite
viva o criador!
Vila do Conde, Pátio, 26.9.2008
Wednesday, September 24, 2008
MENINA
Eh! Menina,
dá-me de comer
não tenho dinheiro
Eh! Menina,
toma conta de mim
estou cansado
da vida de artista
de aparecer nos jornais
Eh! Menina,
estou rebentado
preciso de uns beijos
e de amor
a vida de rock n'roll
põe-me muito em cima
mas faz-me cair
Eh! Menina,
ando pela rua aos pontapés
e julgo-me o Cristo ou o Morrison
imagino coisas
ouço vozes
bebo cada vez mais
Eh! Menina,
preciso de amor
os gajos olham para mim
mas só querem a minha loucura
Eh! Menina,
esta merda não vai dar nada
farto-me de apelar à revolta
e esta merda permanece igual
fiquemos juntos
acariciemo-nos
curtamos o amor.
Porto, Piolho, 24.9.2008
O POETA
Sou o poeta que berra
sou o poeta que incomoda
sou o poeta armado em rock-star
sou o poeta que vai ficar
sou o poeta que insulta
sou o poeta que ginga
sou o poeta que goza
sou o poeta que vai à merda
e que volta
sou o poeta que se solta
sou o poeta que desatina
sou o poeta que não alinha
sou o poeta que vai onde quer.
GAJAS
Entro no "Piolho"
e as gajas estão todas lá fora
e as que ficaram de vir
já não vêm
não me adianta nada
aparecer no "Jornal de Notícias"
ao lado do Alegre
e do Pablo Neruda
as gajas não caem na cantiga
resta-me a cerveja
nem me convém ir lá para fora
por causa da merda do cacau
ou da falta dele
resta-me amar a cerveja.
Piolho, 24.9.2008
Tuesday, September 23, 2008
DADAÍSMO
DADA
Os burgueses consideram o dadaísta um monstro dissoluto, um canalha revolucionário, um bárbaro asiático, conspirando contra suas campainhas, suas contas bancárias, seu código de honra. O dadaísta engendrou armadilhas para tirar o sono dos burgueses...
O dadaísta transmitiu ao burguês sentimentos de confusão e de um estrondo formidável, se bem distante, que fez as campainhas dele zumbirem, seus cofres franzirem a testa e seu código de honra se reduzir a pontinhos.
"A Garrafa Umbilical" - por Hans Arp.
AO PÚBLICO
Antes de baixar entre vocês para arrancar seus dentes decadentes, seus ouvidos supurados, suas línguas cobertas de feridas,
Antes de quebrar os ossos pútridos de vocês,
Antes de abrir o ventre contaminado de cólera de vocês para usar como fertilizantes e o seu fígado, gordo demais, o seu esplin ignóbil e os seus rins diabéticos,
Antes de dilacerar os genitais feios de vocês, viscosos, incontinentes,
Antes de saciar o seu apetite de beleza, êxtase, açúcar, filosofia, pimenta e pepinos metafísicos, matemáticos e poéticos,
Antes de desinfetar vocês com vitríolo, de limpar e untar vocês com paixão,
Antes de tudo isso,
Tomaremos um grande banho anti-séptico,
Estamos prevenindo:
Que somos assassinos.
(Manifesto assinado por Ribemont-Dessaignes e lido por sete pessoas na demonstração do Grand Palais dos Champs Élysées, Paris, 5 de fevereiro de 1920.)
Todos Vocês estão acusados: levantem-se! De pé, como fariam para ouvir a Marselhesa ou Deus Salve o Rei...
Dada, sozinho, não cheira a nada; não é nada, nada, nada.
É como as suas esperanças: nada.
como o seu paraíso: nada.
como os seus ídolos: nada.
como os seus políticos: nada.
como os seus heróis: nada.
como os seus artistas: nada.
como as suas religiões: nada.
Vaiem, gritem, esmurrem meus dentes, e daí? Continuarei dizendo que vocês são uns débeis mentais. Daqui a três meses, meus amigos e eu lhes estaremos vendendo os seus retratos, por uns poucos francos.
(Manifesto canibal Dada, de Francis Picabia, lido na noite Dada do Théâtre de la Maison de I’Oeuvre, Paris, 27 de março de 1920.)
Os dadaístas acreditavam que o artista era o produto e o balangandã tradicional da sociedade moderna, por sua vez anacrônica e condenada. A guerra veio finalmente demonstrar a podridão da sociedade, mas, em vez de preparar-se para criar alguma coisa de novo, o artista foi mais uma vez envolvido pelos espasmos agônicos dessa sociedade. Ele constituía, portanto, um anacronismo cujo trabalho era totalmente irrelevante, e os dadaístas queriam provar em público essa irrelevância. Dada era uma expressão de cólera e frustração. Mas os dadaístas eram pintores e poetas, afinal e sobreviviam numa situação de paradoxal ironia, clamando pelo colapso de uma sociedade e de uma arte das quais eles mesmos se encontravam dependentes sob muitos aspectos, e que, ainda por cima, se haviam mostrado masoquistamente ansiosas para acolher Dada e pagar algum dinheiro em troca das suas obras, a fim de transforma-las também em Arte.
Os dadaístas escreveram inúmeros manifestos, cada qual representando o seu conceito de Dada segundo as cores do próprio temperamento. De que outra maneira poderiam exprimir cólera e frustração? Dada voltou-se em suas direções; de um lado para um ataque violento e niilista à arte, e, de outro, para o piadismo, a pose, a palhaçada. “O que chamamos Dada é uma arlequinada feita de nadas, que implica todas as questões fundamentais, um gesto de gladiador, uma peça cujos despojos apodrecem, uma execução de posada moralidade e plenitude”, escrevia Hugo Ball em seu jornal, Die Flucht aus der Zeit. Picabia e Man Ray produziram perfeitas obras dadaístas de agressão através de objetos como o Retrato de Cézanne: um macaco empalhado; ou Presente, um ferro de engomar comum, com pregos afiados soldados na base que, combinados com a sugestão de Duchamp para um readymade recíproco -Use um Rembrandt como tábua de passar roupa- funcionam como uma metáfora para Dada.
A Arte tornara-se moeda aviltada, coisa feita para o especialista, o conhecedor, que por sua vez se apoiava na tradição e no hábito. Jacques Vaché, que morreu por haver ingerido excesso de ópio em 1918, sem jamais ter ouvido falar de Dada, mas cujo caráter extravagante e cartas cheias de desespero e senso de humor iriam influir poderosamente nos futuros dadaístas parisienses, escrevia ao seu amigo André Breton em 1917: A arte não existe, é claro -daí ser inútil o canto- entretanto nós fazemos parte dela, porque é assim que as coisas são, e não de outra maneira... Logo, não gostamos nem de Arte, nem de artistas (abaixo Apollinaire) E COMO TOGRATH TEVE RAZÃO AO ASSASSINAR O POETA!. Picabia escrevia desrespeitosamente em Jésus-Christ Rastaquouère: “Vocês estão sempre procurando emoções já experimentadas, do mesmo modo que gostam de receber da lavanderia um par de calças velhas, que parecem novas para quem não as olhar com atenção. Artistas são tintureiros, não se deixem enganar por eles. As verdadeiras obras de arte moderna não são feitas por artistas mas por homens, simplesmente. Ou mesmo pelas máquinas, poderia ter acrescentado.
Quando Marcel Duchamp, em 1913, montou uma roda de bicicleta de cabeça para abaixo num banquinho, e em 1914 escolheu o primeiro readymade, um
porta-garrafas, no Bazar do Hôtel de Ville, deu-se o primeiro passo em direção ao debate que Dada iria alimentar efusivamente: este gesto do artista promovia o objeto ordinário, produzido em massa, a obra de arte, ou era o cavalo-de-Tróia que penetrava nas fileiras da arte para reduzir ao mesmo nível todos os objetos e obras de arte? Na realidade, estas são duas faces da mesma moeda. De qualquer modo, no princípio, os readymades ficaram espelhados pelo seu estúdio, e, quando ele se mudou para Nova Iorque em 1915, sua irmã jogou o Porta-garrafas justamente com o resto do lixo que ele havia acumulado. (Ele conseguiu outro depois).
Duchamp só denominou esses objetos de readymade na América, onde começou a destacar outros objetos manufaturados. O Próprio Duchamp quis deixar bem claro que não se tratava de transforma-los em objetos de arte. Explicou que a escolha do readymade dependia, em geral, do objeto. Era necessário resistir à “aparência”. É muito difícil escolher um objeto porque, depois de umas duas semanas, a gente começa a gostar dele, ou a odiá-lo. Temos que alcançar um estado de tamanha indiferença, que se torne impossível sentir emoções estéticas. A escolha de readymades baseia-se sempre na indiferença visual, assim como numa total ausência de bom gosto ou mau gosto... (Gosto é) um hábito: a repetição de uma coisa que já foi aceitas. Assim, os readymades eram exercícios destinados a evitar a arte (hábito).
Duchamp exibiu certa vez um readymade, Cabide, e o público participou inconscientemente do jogo, por não tê-lo reconhecido como peça da mostra ao pendurar nele seus casacos e chapéus. Numa recente exposição londrina Pioneiros da Escultura Moderna, a Roda de Bicicleta e o Porta-garrafas se mantiveram intactos e enigmáticos cinqüenta anos após, toda uma tradição de antiarte.
Duchamp interpreta igualmente os seus desenhos mecânicos (no início pinturas representando órgãos semelhantes a máquinas, como a Passagem da Virgem a Noiva e depois obras de crescente execução mecânica, com a conseqüente eliminação do interesse por suoerfície pictória movimentada, matéria densa, textura, etc., como em Moedor de Chocolate n.º 2, 1914) como formas de escapar à tirania do gosto. Estas pesquisas chegam ao ponto culminante com uma das pinturas mais deliberadamente obscuras e herméticas do século, a Noiva desnudada pelos seus Celibatários, mesmo, executada sobre vidro entre 1915 e 1923, quando ele a deixou .
Essa obra vem acompanhada de algumas notas de Duchamp, esclarecendo tratar-se de uma "máquina de amor" composta de duas partes: a superior, domínio da Noiva, a inferior, dos Celibatários. Cada parte foi escrupulosamente planejada de antemão (existem numerosos estudos dos elementos individuais), e depois colocada dentro de uma perspectiva muito rígida, quase idiossincrática, que possui o perturbador efeito, na metade inferior do trabalho, de fazer com que partes da máquina pareçam literalmente tridimensionais, ao mesmo tempo que sublinham a lisura e a transparência da superfície de vidro. Duchamp incorporou então o acaso a vários experimentos.
Por exemplo, deixou um vidro perto da janela aberta do seu estúdio em Nova Iorque durante muitos meses, para que apanhasse pó, que depois limpou (uma vez fotografado por Man Ray), deixando que as partículas permanecessem apenas nas peneiras, formas cônicas dispostas em meio círculo, onde ele fixou a poeira com cola.
Depois de 1913, exceção feita do único registro do readymades, Tu m’, de 1918, Duchamp abandonou para sempre a pintura convencional de óleo sobre tela. Em 1923 ele aparentemente abandonara toda atividade artística (à exceção de objetos isolados como Folha de Figueira Feminina e exposições surrealistas) preferindo jogar xadrex.
Seu silêncio constituiu talvez o mito mais poderoso e inquietante de Dada.
Entretanto, depois da sua morte, ocorrida em 1968, foi revelado que ele passara cerca de vinte anos, de 1944 a 1966, trabalhando secretamente numa assemblagem, um quarto chamado Uma vez que: 1 A queda d’água, 2 Gás de iluminação, que remetia, por sua vez, às anotações do Grande Vidro.
Duchamp e Francis Picabia haviam-se encontrado e se tornando imediatamente amigos íntimos no final de 1910. Picabia era efervescente, rico e totalmente niilista, e gostava do humor grotesco de Alfred Jarry. Duchamp era retraído, irônico e esotérico em suas predileções. Ambos procuravam um meio de se subtrair ao rótulo da vanguarda parisiense, predominantemente cubista, e ambos nutriam profunda aversão pela atitude de reverência em relação à natureza especial do artista. Em 1911, logo depois de contactar o principal porta-voz de vanguarda, o poeta Guillaume Apollinaire, ele assistiram à encenação de impressions d’ Afrique, de Raymond Roussel, que lhes pareceu um monumento ao humor do absurdo. (que pré-íncrivel coleção de objetos e máquinas (que pré-figura os melhores objetos surrealistas), há uma máquina de pintar, ativada pelos raios do sol, que resolve executar uma obra-prima. A desmitificação da obra de arte promovida por Roussel, e a destruição sistemática da ordem, através da busca do absurdo, reforçaram os seus objetos comuns. Os bizarros jogos lingüísticos que Roussel descreve Como Escrevi Alguns dos Meus Livros, não diferem muito da maneira esotérica com que Duchamp inicia a execução de suas obras.
Francis Picabia começou a fazer desenhos de máquinas por influência de Duchamp, desenvolvendo o potencial blasfematório da metáfora máquina /sexo. Ele conduziu o desenho da máquina a uma conclusão lógica em 1919, em Zurique, quando, muito adequadamente, desmontou um relógio, mergulhou cada uma das suas peças em tinta e as imprimiu no papel (página de rosto para Dada 4-5). Ele havia publicado seu primeiro desenho de máquinas na revista de Alfred Stieglitz, Câmera Work, por ocasião do Armory Show em Nova Iorque, 1913. O Armory Show fora a primeira amostragem da arte européia de vanguarda para o público americano, e o tumulto se formara em torno da pintura de Duchamp Nu descendo a escada. Quando Picabia e Duchamp chegaram da Europa a Nova Iorque em 1915, este já gozava de uma certa notoriedade. Picabia vinha incumbido, em comissão militar, de comprar molossos em Cuba, mas abandonou imediatamente a idéia. Eles se reuniram a um grupo de poetas e pintores igualmente contestatários, que incluía John Covert e Man Ray. Arthur Cravan aparecia entre eles intermitentemente.
Em Paris, fora autor de alguns panfletos cáusticos, chamados Maintenant, e uma vez desafiara o ex-campeão mundial de pesos-pesados, Jack Johnson, para uma desastrosa luta em Barcelona, conseguindo escapar mediante pagamento. Duchamp e seus amigos arranjaram-lhe uma série de conferências sobre arte moderna, destinadas a uma polida audiência nova-iorquina. Mas Cravan apareceu bêbado na primeira palestra, e, sem entender direito o que estava fazendo ali, começou a despir-se. Desapareceu sem deixar vestígio, quando procurava atravessar a remo o Golfo do México, infestado de tubarões.
O grupo não tinha conhecimento do europeu denominado Dada, assim batizado em Zurique, em 1916. Picabia foi a Barcelona por alguns meses, para se recuperar do excesso de bebida e de ópio, tendo ali produzido, em 1917, os primeiros números da sua revista itinerante 391, o periódico de melhor qualidade e maior duração dentre todos os que apareceram informados pelo espírito de Dada. As atividades do grupo de Nova Iorque tiveram o seu ponto alto com a publicação dos números de 391, em 1917, que coincidiram com um gesto espetacular de Duchamp.
Convidado para participar do júri de uma mostra na GrandCentral Gallery, que, seguindo o exemplo dos Indépendants de Paris, dava a qualquer pessoa o direito de exibir os seus trabalhos, Duchamp enviou para lá um vaso sanitário de porcelona branca com o pseudônimo de R. Mutt toscamente pintado num dos lados. Quando a peça foi rejeitada, ele pediu demissão do júri, e o incidente foi divulgado nos tablóides The Blind Man e Rongwrong.
Dadá em Zurique
Muita gente foi Dada por algum tempo, e o próprio Dada variou, dependendo do lugar, ocasião e pessoas nele envolvidas. Dada era essencialmente um estado de espírito, transformando pela guerra de descontentamento em náusea. Esta náusea foi dirigida contra a sociedade responsável pelos estragos da guerra e contra a arte e a filosofia, que apareceram tão impregnadas de racionalismo burguês, a ponto de se tornarem incapazes de criar novas formas, através das quais se pudesse veicular qualquer tipo de protesto. Opondose à paralisia a que esta situação parecia conduzir, Dada voltou-se para o absurdo, para o primitivo, para o elementar.
Dada foi batizado em Zurique em 1916, embora as circunstâncias -e a significação da palavra- ainda sejam discutidas. Richard Huelsenbeck, então um jovem poeta refugiado, afirma que ele e Ball descobriram a palavra acidentalmente num dicionário alemão-francês, e que o vocábulo infantil (que significaria cavalinho-de-pau) . A palavra foi adotada pelo grupo de jovens exilados, na sua maior parte pintores e poetas, abrigados na Suíça para se refugiarem da guerra num terreno neutro, e reunidos no cabaret Voltaire, um night-club literário organizado por Hugo Ball nos inícios de 1916. Houve por algum tempo muita discussão em torno do que seria uma arte nova, uma nova poesia, que revitalizasse uma linguagem gasta e aviltada.
Um membro do grupo, Hans Arp, a um tempo pintor e poeta, descrevia a situação: Em Zurique, em 1915, quando perdemos o interesse pelos matadouros da guerra mundial, nós nos voltamos para a belas-artes. Enquanto o trovão das abaterias ressoava a distância, fazíamos colagens, recitávamos, versificávamos, cantávamos, pondo a alma inteira nisso. Buscávamos uma arte elementar que pudesse, pensávamos, salvar a humanidade da loucura furiosa daqueles tempos. Aspirávamos a uma nova ordem, que restauraria o equilíbrio entre Céu e Inferno. Esta arte se tornou gradualmente objeto de uma geral reprovação. Surpreende que os bandidos na pudessem entender-nos? Sua mania pueril de autoritarismo leva-os a esperar que a própria arte sirva de instrumento para emburrecer a humanidade.
Os dadaístas de Zurique compreendiam Hugo Ball, Emmy Hennings, Hans Richter e Richard Huelsenbeck, da Alemanha, Hans Arp, da Alsácia, Marcel Janco e Tristan Tzara, da Romênia, e ocasionalmente o enigmático Dr. Walter Serner. As manifestação públicas de Dada tiveram lugar em noites de amotinação no cabaret Voltaire. Tzara descreve uma, no seu Diário Dada:
1916, 14 de julho. – Pela primeira vez em todo mundo. Waag Hall. Primeira noite Dada. - (Música, danças, teorias, manifestos, poemas, pinturas, figurinos, máscaras.)
Diante de uma compacta multidão Tzara demonstra, nós pedimos, nós pedimos o direito de mijar em cores diferentes, Huelsenbeck demonstra, Ball demonstra, Erklärung (Declaração) de Arp, meine Bilder (minhas pinturas) de Janco, eigene Kompositionen (composições originais) de Heusser, os cães latem e a dissecação do Panamá no piano e nas docas –poema gritado- gritaria e engalfinhamentos no hall, primeira fila aprova, segunda fila se declara incompetente para julgar, o resto berra quem é mais forte... Luta de boxe reassumida: dança cubista, figurinos de Janco, cada homem com seu grande tambor na cabeça, barulho, música negra/tabajá bonú ú úúúú/5 experimentos literários: Tzara de fraque, em pé, na frente da cortina... explica a nova estética; poema ginástico, concerto de vogais, poema ruidista, poema estático, arranjo químico de idéias, Biribum, biribum... poema vogal a a o, i e o, a i i...
Outra noite parecida com esta atingiu o clímax com a leitura do novo poema abstrato-fonético de Ball, O Gadji Beri Bimba. Trazendo por invólucro um apertado cilindro de papelão azul brilhante, com um comprido chapéu de doutor-feiticeiro listado de azul e branco, Ball teve que ser içado até o palco. Quando começou a declamar os sons sonoros, a audiência explodiu em risos, palmas miados. Ball agüentou firme, e levantando a voz acima da barulhada começou a entoar adotando a milenar cadência da lamentação sacerdotal: zinzin uralala zinzin uralala zinzin Zanzibar zinzala zam.
Era como se ilustrasse a descrição que fizera de Dada no seu jornal Die Flucht aus der Zeit: O que estamos celebrando é ao mesmo tempo uma cena bufa e uma missa de réquiem... Como a falência das idéias destruiu o conceito de humanidade até o seu último reduto, os instintos e as infraestruturas hereditárias estão agora emergindo patologicamente. Já que nenhuma arte, política ou fé religiosa parece adequada para represar esta torrente, restam-nos apenas a blaque e a pose ensangüentadas.
As obras de Dada devem a sua única existência real a atitudes, declarações públicas ou provocações. Tanto nas exposições como nas demonstrações (e a distinção entre estas não existia, do ponto de vista de Dada) o objeto, pintura ou construção Dada constituíam um ato que esperava por uma reação definida.
Como seria inevitável alguns dos experimentos dadaístas na poesia e nas artes plásticas parecem tomar emprestado, até certo ponto, as vozes de outros movimentos. O auto-Retrato Visionário, de Hans Richter, é uma obra expressionista. Dada se mostra, particularmente, povoando de ecos do futurismo italiano, na linguagem violenta de seus manifestos, e em suas experiências com ruído (bruitism) e a simultaneidade. A Procissão Fúnebre, Dedicada a Oscar Panizza, de 1917, do George Grosz dadaísta , e a pintura do futurista Carla Carrà Enterro do Anarquista Galli (1910-1911), sugerem um funeral que descambou para a baderna. As linhas dinâmicas a entrecruzar-se e as casas, luzes e pessoas que se interpenetram também ficam devendo ao conceito de simultaneidade, mais sofisticado, de Umberto Boccioni. Arp se referia, em termos futuristas, ao tantã dinâmico das marcadas diagonais das suas primeiras colagens abstratas. O Porto tísico de Arthur Segal, co a sua paródia das facetas cubistas também revela um débito para com o futurismo. Um estilo é, com freqüência, o artifício de que se lança mão para transformá-lo em sátira, em paródia grotesca. O Poema Simultaneísta de Tzara é um exemplo disso –um poema composto de versos banis em três idiomas, lido com o acompanhamento simultâneo de ruídos fora de cena, macaqueando a idéia de exprimir impressões simultâneas. As tentativas sérias e otimistas dos futuristas para retratar o dinamismo, ou o heroísmo, da vida moderno, constituíram uma presa fácil para os dadaístas, que consideravam como a mais fútil de todas essa tendência particular da atividade artística.
Houve, contudo, uma separação entre o artista na intimidade do seu estúdio e a sua pessoa como aderente às atividades públicas de Dada. Marcel Janco, por exemplo, realizava pesquisas experimentais como relevos de gesso puramente abstratos, ao mesmo tempo que fazia máscaras para as demonstrações Dada, que Arp evoca com alegria em Dadaland : Elas (as máscaras) eram aterrorizantes, a maior parte manchadas de vermelho cor de sangue. Com papelão, papel, crina de cavalo, arame e pano, você fazia seus fetos lânguidos, suas sardinhas lésbicas, seus ratos extáticos.
Arp era um dos membros mais leais do grupo; embora não tivesse muita afinidade com a violência a alarido do Cabaret, percebera de maneira definitiva o alcance, o valor e o significado de Dada.Neste particular, sua posição era muito semelhante à de Hugo Ball. Num ensaio chamado Fiquei Cada Vez mais Afastado da Estética, ele escreveu: Dada desejava destruir os enganos lógicos do homem para recuperar uma ordem natural, irracional. Dada queria substituir o absurdo lógico dos homens de hoje pelo irracional destituído de sentido. É por isso que tocamos com toda a força que pudemos o grande tambor de Dada e trombeteamos o elogio do ilógico. Dada aplicou uma lavagem intestinal na Vênus de Milo e permitiu que Laocoonte e seus filhos se aliviassem depois de milhões de anos de luta coma boa salsicha Píton. Filosofias valem menos, para Dada, do que uma escova de dentes velha, jogada fora, e Dada as deixa para os grandes líderes da humanidade. Dada denunciou as artimanhas infernais do vocabulário oficial do saber. Dada é para os sem-juízo, o que não é nada absurdo, Dada é como a natureza, desprovido de sentido. Dada é pela natureza e contra a arte. Dada é direto como a natureza. Dada é por um sentido infinito e objetivos definidos.
Descontente com a textura gorda da pintura expressionista, Arp começou a construir obras com linhas e estruturas simples. Fez várias colagens severamente geométricas, e também desenhos abstratos que Sophie Taeuber (com quem depois se casou) executou em tapeçaria ou bordado. Ele e Sophie trabalhavam sem conhecer as experiências similares de Mondrian com as linhas retas e os quadrados e retângulos coloridos, e foi apenas em 1919 que viram reproduções delas na revista holndesa De Stifil.
Uma das possíveis razões que quase tornou Dada em Zurique um movimento de arte moderna foi que a capital suíça, ao contrário de Paris, se chocava e se horrorizava diante de tudo que fosse novo em arte. Richter lembra a ocasião em que solicitaram a Arp e Otto van Rees que pintassem o sanguão de uma escola para meninas: De cada um dos lados do saguão da escola apareceram grandes frescos abstratos (os primeiros a serem vistos tão perto dos Alpes), executados com a intenção de consistirem uma festa para os olhos das menininhas e um signo glorioso do progresso da sua cidade para os cidadãos de Zurique. Tudo isto foi, infelizmente, mal compreendido. As famílias das menininhas se enraiveceram, os pais da cidade se tornaram furiosos com aquelas bolhas de cor que não representavam nada e que haviam maculado não só as paredes mas quem sabe o próprio pensamento das crianças. Ordenou-se que os afrescos fossem imediatamente substituídos por pinturas adequadas. O que foi feito, e Mães levando as crianças pela Mão aparecem nas paredes, enquanto o trabalho de Arp e Van Rees morria.
Arp logo abandonou a pintura a óleo sobre tela para utilizar outros materiais, como madeira, desenho, papéis cortados, jornal, partilhando freqüentemente com Sophie o desejo de distanciar-se do monstruoso egoísmo do artista, em função de um ideal de trabalho comunal. Descreveu ele alguns destes trabalhos como arranjados segundo as leis do acaso (embora pareçam cuidadosamente planejados, se comparados aos papéis rasgados dos anos 30). Rejeitamos tudo que fosse cópia ou descrição, permitimos que o Elementar e o Espontâneo reagissem em plena liberdade. Uma vez que a disposição dos planos e as proporções e cores acaso, declarei que essas obras, como a natureza, se ordenavam “segundo a lei do acaso”, o acaso constituindo para mim apenas a parte limitada de uma insondável raison d’être, de uma ordem inacessível em sua totalidade.
Na poesia que fez nessa época, Arp recorreu ao acaso de uma maneira mais radical, mais dada, colhendo a esmo palavras e frases de jornais e montando-as em poemas.
Alguns dos seus relevos em madeira eram feitos de pedaços de pau estragados, aparentemente lixo. Muitos dos relevos de 1916-17 foram deliberadamente deixados com a madeira sem pintura ou polimento, com cabeças de prego aparecendo. Outros relevos em madeira, com a Floresta e Tabuleiro de Ovos, receberam pintura brilhante e se compõem de forma altamente concentradas, que mais tarde se desdobrarão na abstração biomorfa das suas esculturas. Era uma morfologia flexível. Richter se lembra de pintar, com Arp, um enorme pano de fundo para demonstração Dada. Começando de pontas opostas, diz ele, nós cobrimos o rolo de papel com metros e metros de uma plantação de pepinos gigantes. O desenvolvimento de Arp em direção à abstração orgânica era enfatizado pelos desenhos automáticos com que ele fazia experiências na época, técnica que mais tarde seria retomada e sistematizada, com diferente motivação, pelos surrealistas.
Durante os dois primeiros anos em Zurique, Dada ainda era visto, particularmente por Ball e Arp, como passível de oferecer saídas para uma nova direção em arte. O propósito de restaurar a magia da linguagem em Ball, a busca de Arp pela objetividade, pode ser encarada desta maneira. Ball dizia: O concreto e o primitivo aparecem (ao dadaísta) nesta descomunal antinatureza, como o próprio sobrenatural.
Chegava a ser apresentado sob este prisma, de maneira pública. Tzara descreveria a revista de Zurique –Dada- quando a introduziu a Picabia, como uma publicação de arte moderna. Com a chegada de Picabia a Zurique, em 1918, no entanto, operou-se uma mudança radical. Os dadaístas nunca se haviam deparado com alguém que nutrisse pela arte tamanha descrença, e que evidenciasse de maneira tão aguda a falta de sentido da vida. Richter diz que, para ele, o encontro foi como a experiência da morte, e que, depois de reuniões semelhantes, os seus sentimentos de desespero eram tão intensos que percorria o estúdio chutando e furando os seus quadro. Tzara, o principal empresário e publicista de Dada em Zurique, sucumbiu imediatamente ao fascínio da personalidade dominadora e magnética de Picabia; e no seu famoso Manifesto Dadá 1818, coloca a sua incrível agilidade verbal a serviço do niilismo.
Filosofia, eis a questão: de que lado olharemos a vida, Deus, pensamento, ou que outro tipo de fenômeno? Tudo o que vemos é falso. Não considero o resultado relativo mais importante do que a escolha entre bolo e cerejas depois do jantar. O sistema de considerar com presteza o outro aspecto de uma coisa a fim de impor indiretamente uma opinião é chamada de dialética; em outras palavras, regatear em torno do espírito que anima as batatas fritas enquanto se baila um método ao redor delas.
Se eu gritar:
Ideal, ideal, ideal,
Conhecimento, conhecimento, conhecimento,
Bumbum, bumbum, bumbum,
Terei dado uma versão bastante fiel de progresso, lei, moralidade e várias outras excelentes qualidades que muitos homens altamente inteligentes discutiram em livros inumeráveis.
Dada em Paris
Foi o Manifesto de 1918, de Tzara (Escrevo um manifesto que não visa a nada, mas apesar disso digo umas tantas coisas, e em princípio sou contra manifestos e contra princípios), que conquistou André Breton e outros membros do grupo parisiense Littérature. Tzara chegou a Paris bem no principio de 1920, e imediatamente, com a ajuda de Picabia, Breton, os poetas Louis Aragon, Philippe Soupault, Georges Ribemont-Dessaignes e outros, lançou-se à divulgação, para um público maior, da revolta Dada, através de obras ultrajantes como Penas, de Picabia, por exemplo. A primeira demonstração Dada teve lugar a 23 de janeiro, no Palais dês Fêtes, e, como deu o tom às manifestação subseqüentes, vale a pena descreve-la pormenorizadamente. Uma palestra anunciada como "A Crise do Câmbio", por André Salmon, que atraíra os pequenos lojistas do bairro, desejosos de esclarecimento financeiro, revelou-se a demolição dos valores literários a partir do simbolismo. A audiência começou a debandar. Mas foi com a apresentação, feita por Breton, de alguns quadros de Picabia (Picabia nunca gostara de se apresentar no palco), que a coisa realmente começou. Uma enorme tela, sobre rodinhas foi empurrada para o palco, coberta de inscrições: alto, embaixo, e baixo, em cima, com o letreiro em grandes letras vermelhas, da piada obscena L.H.O. O. Q. (Elle a chaud au cul).
Quando os insultos principiaram a chover, o público começou a berrar, invectivando os manifestantes, e, depois de uma segunda apresentação da obra, deu-se a balbúrdia. Apareceu um quadro-negro coberto de mais letreiros, sob o título de Riz au Nez (Arroz no Nariz), que Breton imediatamente apagou com um espanador. Além de não se tratar de obra de arte, a proposta foi também destruída debaixo do olhar do público. O clímax da noite consistiu na aparição, no palco, de Monsieur Dada, de Zurique: Tristan Tzara, que passaria a exibir os seus trabalhos. Ele começou imediatamente a ler o último discurso de Leon Daudet na Câmara dos Deputados, acompanhado nos bastidores por Breton e Aragon, tocando campainhas com a maior energia. O público, que incluía personagens como Juan Gris, que comparecera para estimular a nova geração, reagiu com violência. Um editor de vanguarda começou a gritar: Voltem para Zurique! Paredão com eles!. Dada armara uma boa armadilha, e depois disso o público ficou prevenido.
Postado por David Rock
Marcadores: Dadaismo
retirado de http://esteticadoteor.blogspot.com
LOUCURA, ONDE ESTÁ A CURA?
DuvidoLogiasAgosto 23, 2007
Pra ninguém enjoar… Gérard de Nerval de novo
Arquivado em: psicanálise — Tania @ 8:06 pm
Parece que quanto mais se toma consciência da própria loucura, mais insuportável fica, maior o sofrimento - moral, mental, físico e,por vezes, espiritual. É meio paradoxal: percebe-se o distanciamento do senso comum, social e, ao mesmo tempo, uma aproximação da Verdade, a( in?!)desejada e nunca totalmente conhecida (mal?)dita ou (bem?)dita Verdade. Quão complexo!
“(…) parecia que eu sabia tudo e que os mistérios do mundo se revelavam a mim nessas horas extremas.” (Nerval)
O delírio, muitas vezes, é o menor dos males… Freud o analisa e sintetiza tão bem pelo estudo das memórias de Schreber. Uma tentativa de elaborar um “auto-mundo” tolerável, o instinto de sobreviver a um eu/outro odiado. Porém, uma tentativa malograda por Lei, por fado talvez.
“Morrer… dormir… dormir… sonhar, talvez… É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando ao fim desenrolarmos toda a meada mortal, põe-nossuspensos.” (In: “Hamlet”-1601)
Romântico ou trágico?! Os dois?! Bom, voltemos a Nerval e o tema loucura, morte, vida e afins…
Creio ter experimentado um delírio maníaco sobrenatural semelhante em certos aspectos ao de Nerval. Como se fosse a defesa (ainda que arcaica) última contra a extremosa desistência da ‘Santa Esperança’ (sempre supostamente a última a morrer, eu quis passar à sua frente) . Talvez possam dizer que eu queria acabar de vez com o jogo de xadrez do filme “O Sétimo Selo” exatamente por tê-lo assistido em companhia do meu amado rejeitante… Oh! Mas fado é fado, Lei é Lei. Malogro! A sensação não é em nada agradável, um pânico infinito de tortura iminente. Pensamentos invadem a mente como Verdades Abaolutas e Inquestionáveis . Cheguei a acreditar que todos os homens queriam me estuprar e todas as mulheres queriam me matar. Vale ressaltar que eu não fazia idéia de quem fosse Freud, nem tinha ficado sabendo da existência de algo chamado Psicanálise nesse tempo. Eu era adolescente fazendo intercâmbio. Pensava que tudo que acontecia estava relacionado à minha mente e todos sabiam o que eu pensava. O que as pessoas diziam era como se fossem códigos metafóricos para me enganar. Foi assim o começo de meu delírio maníaco de que eu era santa e tudo o que houvesse feito de errado era culpa da sociedade que fazia um complô para me corromper e destruir. Acreditei firmemente que o fim do mundo estava próximo. Salvariam aqueles que conseguissem se perdoar; os demais ficariam no eterno tormento do sentimento de culpa e sofrimento extremo. Já faziam mais de seis meses que eu estava na Oceania e minha família, meu la, aqui na América. O pior foi quando me lembrei deles no delírio, com medo de algum deles não se salvar. Assim, minha desorientação no tempo, espaço, linguagem apenas foi aumentando e queimando como fogo no peito.
Nerval, por sua vez, pensou ter se tornado”muito grande e que, inundado de forças elétricas, derrubaria todo aquele que de mim se aproximasse”(s.i.c.)
Pensei que era Filha de Deus, assim como Jesus foi o Filho. E teria uma missão tão dolorosa quanto a de Jesus. No fundo, eu só conseguia pensar que daria qualquer coisa e faria qualquer coisa para que meus pais se salvassem dentro do meu delírio.
Seria tudo isso minha esforçada malograda vontade de conceituar a tal da saudade? Talvez Freud explicasse, pena que não pôde me dizer. Ê saudade!!!
“Por toda parte morria, chorava ou agonizava a imagem sofredora da Mãe eterna”(Nerval
Em meu caso, acreditei que, para conseguir assegurar que toda minha família se salvaria, ou seja, perdoariam-se e seriam redimidos, eu teria que enfrentar o que fosse para mim o mais abominável tabu. Nem tente imaginar… O fazer e o pensar confundiam-se em minha cabeça. Temi mais por minha mãe, por ela ser mais sensível, tinha o hábito de não compartilhar seus problemas e preocupações, chorava escondida no banheiro e tinha uma tendência a auto-depreciação e baixa auto-estima. O pensamento acelerava, o sentimento mais ainda. Tinha também meu pai, já meu irmão era um anjo, santo como eu - confundi tudo, mas naquele momento era essa minha realidade. Sofri dias, semanas a fio incessantemente. Conjeturo que só sobrevivi devido aos momentos de euforia na parte maníaca de Santa Salvadora no delírio. Tinha a consciência limpa, sabia que estava diferente. Ao contrário do que todos apostaram e fizeram tudo quanto exame tivesse, não havia nenhuma substância química exceto as produzidas internamente. Eu não tomava nem coca-cola. Não fumava ou bebia e nunca tinha visto ou sequer pensado em outras drogas. Na época, jogava tênis competitivo e sonhava ser profissional. Bom, é por isso que lembro tão bem, minha consciência estava completamente clara. Nem fiquei feliz ao ver meus pais e meu irmão quando estes foram me buscar, eu não os queria naquele meu mundo cruel.
“Eu” dividia-se em ora demônio ora santa. Meu humor acho que quase se solidificou, ops, brincadeirinha… É que alternavam choros agudos e sufocantes com altas gargalhadas constantemente nesse período. Ninguém entendia, muito menos eu. Nem existia tal “eu”. Quem era esse “eu”? Nerval também sofreu essa sensação de divisão, auto-irreconhecimento e o sempiterno ‘Quem sou eu’ ?
“Então é verdade(…), nós somos imortais e conservamos aqui as imagens do mundo que havíamos habitado. Que felicidade sonhar que tudo o que houvéssemos amado existirá para sempre em torno de nós!” (Nerval)
Pensei que sofreria todas as torturas que lembrei da aula de História com a professora mostrando as imagens argh. Chorei e passei a mão nos olhos. Saía sangue. Bom, nem preciso contar o que minha fértil imaginação não elaborou com tudo isso, para descobrir muito depois que era apenas um capilar que havia se rompido por eu esfregar com tanta força os olhos.
Claro que não terminarei a história, pois eis que dela faço parte e, ademais, “sempre que alguém quer esgotar um assunto esgota a paciência do leitor”(Oscar Wilde).
ANTES O SONHO
Escrevo e penso
tenho mais uns livros
em cima
o gerente reaviva
a guerra Porto-Benfica
a menina brinca
continuo em busca
do paraíso perdido
da pátria remota
da vida
que não é aqui
Escrevo e penso
antes não pensasse
e me deixasse levar
antes fosse sempre
festa e embriaguez
antes houvesse homens verdes
e seres fantasmagóricos
a voar e a andar de bicicleta
antes acabassem os relógios,
os televisores e os controladores
antes o sonho
do que esta merda.
Vilar do Pinheiro, VIP, 23.9.2008
TEIXEIRA DE PASCOAES
A POESIA É UMA ARMA
Cultura
A poesia ainda é uma arma política?
Nos 35 anos da morte de Pablo Neruda, poetas reconhecem o declínio actual da literatura de intervenção
00h30m
SÉRGIO ALMEIDA
O que resta hoje da poesia de contornos políticos, de que Pablo Neruda foi um dos maiores cultores? Três poetas ouvidos pelo JN (Manuel Alegre, Humberto Rocha e António Pedro Ribeiro) realçam a sua importância mas advertem para os riscos.
"Arma carregada de futuro", conforme definição do espanhol Gabriel Celaya, a poesia sempre reforçou a sua importância nas grandes crises morais da Humanidade, altura em que a voz dos poetas adquiria uma ressonância mais forte e clara. Os tempos, todavia, não correm de feição para estes "legisladores sem lei do universo", de que falava Novalis, confrontados com uma sociedade- espectáculo cujos valores parecem estar nos antípodas morais dos seus.
A guetização crescente da poesia (circunscrita a tiragens que raras vezes ultrapassam as poucas centenas de exemplares) e a transferência da discussão para outros espaços, mais imediatos mas também mais voláteis, são alguns dos motivos que tornam improvável, hoje, o aparecimento de um poeta que desempenhe o papel de guardião moral do seu tempo, como aconteceu com Pablo Neruda, afirmam os autores ouvidos pelo JN.
Mesmo discordando do conceito - "toda a poesia, em última instância, é ideológica, porque não há neutralidade na poesia", diz -, Manuel Alegre admite que nos escritos das novas gerações de poetas os sinais de intervenção pública estão muito mais diluídos do que acontecia ainda há três décadas.
No entanto, recusa-se a ver no facto uma certidão de óbito antecipada da poesia que se coloca ao serviço de valores. "São ciclos. As circunstâncias também são diferentes, mas a nossa poesia é rica em autores com um elevado sentido cívico e político nos seus textos, como Sá de Miranda, Almeida Garrett, Miguel Torga ou Sophia de Mello Breyner", explica o autor de "Praça da canção", para quem "são precisamente os escritos de Neruda centrados na discussão ideológica aqueles que o tempo se encarregou de arrumar, em contraste com os poemas de amor, por exemplo".
Estará, então, a poesia que se empenha nas causas do presente, como aconteceu com a do poeta chileno, condenada a um rápido esquecimento? A questão está longe de gerar consenso. António Pedro Ribeiro, cuja obra inclui escritos tão mordazes como "Declaração de amor ao primeiro-ministro" ou "Queimemos o dinheiro", não tem dúvidas de que a poesia de cariz militante "faz hoje mais sentido do que nunca", citando como exemplo "as recentes crises da alta finança", que apenas vêm mostrar, afinal, que "o capitalismo desumano continua a ser o mesmo dos tempos de Pablo Neruda".
Autor de "Pão e circo", romance agora lançado pela Afrontamento, o poeta Humberto Rocha vê no cunho estritamente pessoal que caracteriza boa parte da poesia actual - em que a narração estrita do quotidiano substitui o questionamento moral e político - um sintoma "do vazio ideológico reinante". "Há uma vacilação entre a ficção e a representação do Eu como núcleo fundamental da estória dentro da História, conduzindo a uma vacuidade por exaustão do narcisismo decorrente", afirma o autor de "Esqueletos leiloados", convicto de que a poesia actual não pode ter um sentido vago ou impreciso, pois "uma das funções de quem escreve não é apresentar modelos, mas unificar a dispersão do humano enquanto ser singular mergulhado no caos que advém da sua própria condição humana."
Se a função do poeta se mantém, ainda que em novos moldes, exige-se, contudo, um "upgrade" do discurso, defende António Pedro Ribeiro: "Não podemos ler apenas Marx e ouvir Zeca Afonso, como alguns poetas ainda fazem".
Da lição de vida de Neruda - " o último gigante da liberdade total e impossível da poesia do século XX", define Humberto Rocha -, há a reter, sobretudo, "o poeta que cantou o amor como ninguém, mas também o seu exemplo revolucionária e a vida intensamente solidária", acrescenta António Pedro Ribeiro.
Jornal de Notícias, 23.9.2008
www.jn.sapo.pt
Monday, September 22, 2008
UM MUNDO NOVO
Um mundo novo abre-se à minha frente. O caos criador ilumina-me. Nunca mais andarei cabisbaixo. As ideias fervilham. As ideias dançam. As ideias fazem acrobacias. Festas. Orgias. Bacanais sem fim.
Após a leitura dos futuristas e dos dadaístas estou mais próximo do que devo fazer em palco. Fazer uma performance com objectos, chocar, provocar, insultar o público. Não me posso limitar a dizer uns poemas. Essa história de rasgar ou queimar dinheiro é bem vista. As coisas que ando a ensaiar com o Henrique fazem todo o sentido.
DADÁ
Só por meio do desemprego se torna possível o indivíduo chegar à certeza sobre a verdade da vida e finalmente habituar-se à experiência.
Sunday, September 21, 2008
MOVIDA
Não há movida nesta terra
estou só no café
nem o bêbado ficou
ao menos no "Miss Simpatia"
rio-me com o Rocha
Coitado do Rocha!
Sempre sózinho
sem ninguém para partilhar
das suas análises sociológicas
a mim as gajas só me dão cortes
e quando os jornais telefonam
esqueço-me do telemóvel
a brasileira masturba-se na copa
e há diseurs que me irritam
solenemente.
DIÁRIO
Sou tido por alguém respeitável nesta terra. Os episódios da pedra na Junta de Freguesia e da bebedeira monumental na estrada ficam para a História. Agora há a polémica com o "lobo mau" no blog da Cláudia loirinha. Sou acusado de engatatão foleiro depois de ter falado no papel das retretes e das fossas na poesia. No fundo, há muito que me fazia falta uma boa polémica. Sou poeta, caro amigo, digo eu. Com livros publicados. Não ando no engate barato. Eis a dama ofendida. Vamos ter duelo ao florete. E até ando a ser requisitado pela imprensa.
Ver mais em http://poesiaemartini.blogspot.com
Friday, September 19, 2008
EOSM
E os bancos? Bem… não vamos nem falar sobre eles. Basta dizer que num futuro distante, quem sabe, as pessoas olhem para o passado e para as antigas intituições financeiras que eram chamadas de bancos e tenham tanta aversão (e porque não dizer, asco) à idéia de que um dia as pessoas depositaram suas vidas nas mãos de tais entidades, da mesma forma que as pessoas de hoje acham um absurdo que um dia tenha existido um Santo Tribunal Inquisitorial que controlasse o que as pessoas deviam ou não acreditar.
Aliás, o próprio conceito de dinheiro é o mais puro nonsense. Senão vejamos: existe um minério amarelo no planeta chamado Terra (o terceiro planeta que orbita uma estrelinha de quinta categoria, na periferia da Via Láctea. Digamos que se o centro da galáxia fosse Nova York, o nosso sol seria a Ilha de Páscoa). Como é difícil de encontrar esse mineral amarelo, os macacos-pelados que habitam a Terra passam a procurar por ele como loucos pelo simples fato de ser bonito. Porém, este mineral (que é um tipo de metal) não serve para nada, não se pode fazer nada de muito útil com ele. Mas mesmo assim os macacos-pelados o adoram. Ele é amarelo, e brilha… e brilha, e é amarelo, e brilha… e… bom, já deu para entender!
Ai, os macacos-pelados, num surto de loucura, passam a falar que o tal metal é “valioso” (os outros macacos, com pêlos, acham que água e bananas são bem mais valiosas. É, gosto não se discute!), e passam a dizer que uma certa quantidade de metal amarelo que brilha vale duas galinhas. Uma quantidade maior, um boi, dois bois, seis cabras, uma casa, uma esposa, o silencio de outro macaco-pelado que sabe demais e por ai vai. Mas como os macacos-pelados acham que o tal metal é tão valioso assim, outros macacos-pelados que tem preguiça de ir até onde existe o metal, resolvem roubar o metal dos outros que tem. Logo, para não correr o risco de andar por ai com um monte metal amarelo brilhante, os macacos-pelados inventam uma coisa chamada dinheiro. O dinheiro seria como o metal amarelo brilhante, mas não é. Assim, quem tivesse uma quantidade do tal dinheiro, teoricamente teria um equivalente daquilo em metal amarelo brilhante. Primeiro foram as moedas.
Até ai tudo bem, porque elas podiam ser feitas de metal amarelo brilhante. Mas ai os macacos inventaram o “papel moeda”: um pedaço de papel colorido, escrito com um valor equivalente em metal amarelo brilhante. Seria mais ou menos como um “este papel vale 1, 2 ou 10 porções de metal amarelo brilhante”. Entretanto, a essa altura da história, os macacos-pelados já não viam o tal metal amarelo brilhante há muito tempo. Mas ai eles foram mais criativos! Pegaram um pedaço de papel onde podiam escrever um certo valor equivalente a quantidade do, agora sumido, metal amarelo brilhante e os entregavam a outros macacos-pelados que acreditavam que aquele papel que o outro tinha rabiscado alguns numeros valia alguma coisa. Mas ai os nossos macacos se superaram! Eles pegaram um pedaço de plástico e disseram que ele teria o valor de várias porções de metal amarelo brilhante. Porém, metal amarelo que é bom, ninguém vê já faz um bom tempo. Mas isso não impede que os macacos-pelados continuem acreditando que toda essa maluquice que eles inventaram faz algum sentido! Ou seja, o tal metal amarelo brilhante e o dinheiro só valem alguma coisa porque toda a comunidade mundial dos macacos-pelados, em um grande delírio coletivo, dizem que eles valem alguma coisa de fato. E o pior é que dizem que os outros macacos, os peludos, é que são irracionais! Bom, vocês pegaram a idéia do que queremos dizer? Assim esperamos.
Talvez seja por isso que, maluquice por maluquice, as figuras dos piratas sempre nos pareceram atraentes (macacos-pelados boiando em conchas de madeira e roubando metal amarelo brilhante de outros macacos-pelados que achavam que era digno morrer para defender o metal amarelo brilhante que na maioria das vezes nem era deles, e que as vezes nem era mesmo metal amarelo brilhante).
EOSM
Aliás, o próprio conceito de dinheiro é o mais puro nonsense. Senão vejamos: existe um minério amarelo no planeta chamado Terra (o terceiro planeta que orbita uma estrelinha de quinta categoria, na periferia da Via Láctea. Digamos que se o centro da galáxia fosse Nova York, o nosso sol seria a Ilha de Páscoa). Como é difícil de encontrar esse mineral amarelo, os macacos-pelados que habitam a Terra passam a procurar por ele como loucos pelo simples fato de ser bonito. Porém, este mineral (que é um tipo de metal) não serve para nada, não se pode fazer nada de muito útil com ele. Mas mesmo assim os macacos-pelados o adoram. Ele é amarelo, e brilha… e brilha, e é amarelo, e brilha… e… bom, já deu para entender!
Ai, os macacos-pelados, num surto de loucura, passam a falar que o tal metal é “valioso” (os outros macacos, com pêlos, acham que água e bananas são bem mais valiosas. É, gosto não se discute!), e passam a dizer que uma certa quantidade de metal amarelo que brilha vale duas galinhas. Uma quantidade maior, um boi, dois bois, seis cabras, uma casa, uma esposa, o silencio de outro macaco-pelado que sabe demais e por ai vai. Mas como os macacos-pelados acham que o tal metal é tão valioso assim, outros macacos-pelados que tem preguiça de ir até onde existe o metal, resolvem roubar o metal dos outros que tem. Logo, para não correr o risco de andar por ai com um monte metal amarelo brilhante, os macacos-pelados inventam uma coisa chamada dinheiro. O dinheiro seria como o metal amarelo brilhante, mas não é. Assim, quem tivesse uma quantidade do tal dinheiro, teoricamente teria um equivalente daquilo em metal amarelo brilhante. Primeiro foram as moedas.
Até ai tudo bem, porque elas podiam ser feitas de metal amarelo brilhante. Mas ai os macacos inventaram o “papel moeda”: um pedaço de papel colorido, escrito com um valor equivalente em metal amarelo brilhante. Seria mais ou menos como um “este papel vale 1, 2 ou 10 porções de metal amarelo brilhante”. Entretanto, a essa altura da história, os macacos-pelados já não viam o tal metal amarelo brilhante há muito tempo. Mas ai eles foram mais criativos! Pegaram um pedaço de papel onde podiam escrever um certo valor equivalente a quantidade do, agora sumido, metal amarelo brilhante e os entregavam a outros macacos-pelados que acreditavam que aquele papel que o outro tinha rabiscado alguns numeros valia alguma coisa. Mas ai os nossos macacos se superaram! Eles pegaram um pedaço de plástico e disseram que ele teria o valor de várias porções de metal amarelo brilhante. Porém, metal amarelo que é bom, ninguém vê já faz um bom tempo. Mas isso não impede que os macacos-pelados continuem acreditando que toda essa maluquice que eles inventaram faz algum sentido! Ou seja, o tal metal amarelo brilhante e o dinheiro só valem alguma coisa porque toda a comunidade mundial dos macacos-pelados, em um grande delírio coletivo, dizem que eles valem alguma coisa de fato. E o pior é que dizem que os outros macacos, os peludos, é que são irracionais! Bom, vocês pegaram a idéia do que queremos dizer? Assim esperamos.
Talvez seja por isso que, maluquice por maluquice, as figuras dos piratas sempre nos pareceram atraentes (macacos-pelados boiando em conchas de madeira e roubando metal amarelo brilhante de outros macacos-pelados que achavam que era digno morrer para defender o metal amarelo brilhante que na maioria das vezes nem era deles, e que as vezes nem era mesmo metal amarelo brilhante).
EOSM
NADA A PERDER
Não vim ao mundo
para agradar a toda a gente
não vim ao mundo
para receber as palmas
e as honras desta corte
nem venho com palavras conciliadoras
embora às vezes as use
para não ficar sempre em guerra
não vim ao mundo
para ganhar dinheiro
não faço amor com notas de cinco
e acho essa estória do trabalho
e do sacrifício uma grande treta
Não vim ao mundo
para falar dos vizinhos
nem de automóveis nem de assaltos
nem de polícias
não vim ao mundo
para olhar para a TV
fartei-me de imbecilidades
sou o gajo que abandonou o jogo
de livre vontade
por achar que o jogo era absurdo
que foi vaiado pelo estádio inteiro
e pelos próprios colegas de equipa
que se fartou de ser espectador
eu sou o gajo que nada tem a perder.
Vilar do Pinheiro, 19.9.2088
WE WANT THE WORLD AND WE WANT IT NOW
"O capitalismo sempre foi uma extraordinária máquina inventiva. O pior agora é que queremos salvar o capitalismo do capitalismo."
(Pedro Lomba, Jornal de Notícias, 19/9/2008)
Salvar o capitalismo do capitalismo? O capitalismo contra o capitalismo? Os capitalistas a foder outros capitalistas. Estão aqui os tempos negros. Mas está aqui também o caos. O caos de Morrison, de Hakim Bey e de Dionisos. É tempo de cantar o caos, de ir para a rua celebrar o caos. Nada há a perder, a não ser...o capitalismo. Finalmente a merda do caos! E, quem sabe, a revolução. Façam-se fogueiras. Incendeiem-se automóveis! Vamos todos dançar numa rave. WE WANT THE WORLD AND WE WANT IT NOW! Camarada, não ligues ao discurso obreirista, não ouças essa patranha que diz que o trabalho dignifica o homem. O trabalho é sacrifício e exploração. Não te sacrifiques! Não trabalhes! Sacrifica-te apenas para a revolução. Não ouças os profetas da morte. Não ouças os que te falam em concórdia, em empreendorismo, na competividade, no mercado sacrossanto. Manda foder o mercado! Queimemos o dinheiro! Organizemos uma grande festa, uma grande orgia e queimemos o dinheiro. Acabemos com os podres todos desta merda. Construamos um novo mundo. Um mundo novo nascerá dos escombros. Um mundo de paz e amor. Sim, e aí falaremos do amor, do amor, do amor, da merda do amor.
Thursday, September 18, 2008
CAOS-HAKIM BEY
Caos
O Caos nunca morreu. Bloco intacto e primordial, único monstro digno de adoração, inerte e espontâneo, mais ultravioleta do que qualquer mitologia (como as sombras à Babilônia), a original e indiferenciada unidade-do-ser ainda resplandece, imperturbável como as flâmulas negras frenética e perpetuamente embriagada dos Assassinos1.1.
O caos é anterior a todos os princípios de ordem e entropia, não é nem um deus nem uma larva, seu desejos primais englobam e definem todas coreografia possível, todos éteres e flogísticos sem sentido algum: suas máscaras, como nuvens, são cristalizações da sua própria ausência de rosto.
Tudo na natureza, inclusive a consciência, é perfeitamente real: não há absolutamente nada com o que se preocupar. As correntes da Lei não foram apenas quebradas, elas nunca existiram. Demônios nunca vigiaram as estrales, o Império nunca começou, Eros nunca deixou a barba crescer.
Não. Ouça, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe idéias de bem e mal, infundiram-lhe a desconfiança de seu próprio corpo e a vergonha pela sua condição de profeta do caos, inventaram palavras de nojo para seu amor molecular, hipnotizaram-no com a falta de atenção, entediaram-no com a civilização e todas as suas emoções mesquinhas.
Não há transformação, revolução, luta, caminho. Você já é o monarca de sua própria pele - sua liberdade inviolável espera ser completa apenas pelo amor de outros monarcas: uma política se sonho, urgente como o azul do céu.
Para lograr abrir mão de todos os acentos e hesitações ilusória da história, é preciso evocar a economia de uma Idade da Pedra lendária - xamâs e não padres, bardos e não senhores, caçadores e não policiais, coletores paleoliticamente preguiçosos, gentis como sangue, que ficam nus para simbolizar algo ou se pintam como pássaros, equilibrados sobre a onda da presença explícita, o agora-sempre atemporal.
Agentes do caos lançam olhares ardentes a qualquer coisa ou pessoa capaz de suportar ser testemunha de sua condição, sua febre por lux et voluptas. Estou desperto apenas no que amo e até o limite do terror - todo o resto é apenas mobília coberta, anestesia diária, merda para cérebros, tédio sub-réptil de regimes totalitários, censura banal e dor desnecessária.
Avatares do caos agem com espiões, sabotadores, criminosos do amor louco, nem generosos nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, semelhantes a bárbaros, perseguidos por obsessões, desempregados, sexualmente perturbados, anjos terríveis, espelhos para a contemplação, olhos que lembram flores, piratas de todos os signos e sentidos.
Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entres as paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monolitos paranóicos. Arrancados da tribo pela nostalgia selvagem, escavamos em busca de mundos perdidos, bombas imaginárias.
A última proeza possível é aquela que define a própria percepção, um invisível cordão de ouro que nos conecta: dança ilegal pelos corredores do tribunal. Seu eu fosse beijar você aqui, chamariam isso de um ato de terrorismo - então vamos levar nossos revólveres para a cama e acordar a cidade à meia-noite como bandidos bêbados celebrando a mensagem do sabor do caos com um tiroteio.
Wednesday, September 17, 2008
NERO
Os bancos fecham. O capitalismo está a arder. Não deixo de estar contente. Bebo a isso. A minha revolução é caótica, morrisoniana. Não tenho de ser racional. Dinamitemos a bolsa!- os velhos slogans estão de volta. De qualquer modo, não tenho nada a perder. Não sou obrigado a gramar com o capitalismo todos os dias. Há que fazer a guerrilha. Mostrar o desprezo pelo dinheiro e pelo mercado. Há que ser um terrorista poético.
Agora chove lá fora. As ideias do bem e do mal guerreiam no meu cérebro. Tenho medo de me deixar levar pelas ideias demoníacas. Pareço um Nero. Roma arde. Já não sei quem ateou o fogo. Agarro-me aos poemas e canto. As pessoas correm desesperadas, tentando por-se a salvo. É o caos. Roma em chamas. O fogo consome tudo. E eu danço com a minha amada. É a imagem que vem. Tenho medo.
Tuesday, September 16, 2008
JIM MORRISON
Depois destes anos todos chego à conclusão que é com Jim Morrison que me identifico mais. Sucessor e leitor dos beatnicks, Morrison já dizia que "se a minha poesia pretende atingir alguma coisa, é libertar as pessoas dos limites em que se encontram e que sentem". Jim foi um revolucionário mas não um revolucionário tradicional. O poeta dos Doors apelou para o caos, não tinha uma cartilha pré-definida, não tinha de estar sempre lúcido nem de se portar sempre bem. Apelou para o caos porque entendia que era esse o caminho para a luz, para a liberdade. Deu ao rock a dimensão teatral. Era um xamã, aquele que entrava em contacto com os deuses e com a loucura. Não se contentava em cantar a paz e o amor como os hippies. Achava-os ingénuos. Queria chegar lá mas achava que tínhamos de atravessar o caos, "atravessar para o outro lado". Percorreu a estrada do excesso para alcançar a sabedoria, como indicou William Blake. Quis ultrapassar os limites. Entendia que a vida não se resume a uma fórmula única e irreversível, ao ganhar dinheiro. Revoltou-se contra a autoridade, contra a polícia. Foi um espírito livre, um menino e um bailarino no sentido nietzscheano.
Monday, September 15, 2008
GOMES LEAL E JOSÉ GOMES FERREIRA
GOMES LEAL
I
(Lápide para colocar no largo onde o
grande poeta Gomes Leal foi apedrejado
pelos garotos de Lisboa)
Aqui,
onde passaram rodas e enterros,
olhos e ventos...
(E urinaram os perros
nos excrementos...)
Aqui,
onde a mesma andorinha
repete há séculos a mesma primavera de realejo...
(E cai uma chuva miudinha
nas manhãs de bocejo...)
Aqui,
onde os trens e as bestas
arrancaram estrelas com os cascos...
Foi aqui
que tombou o Príncipe das Horas Funestas
num suor de chascos.
Sim, foi aqui que te viram rolar na sarjeta,
apedrejado na alma pelos garotos.
(A chorar, a chorar, com alegria secreta
dos anjos bebados nos esgotos.)
E a tua sombra ficou para sempre no chão,
incrívelmente branca,
que nenhum espectro, nenhum vento, nenhum braço sem mão
apaga ou arranca.
Impregnou-se de lágrimas no solo
e aqui ficou na pedra onde caíste
__tu, poeta, que trazias no olhar meninos ao colo
e na voz um fantasma de lança em riste.
Tu que foste católico, jacobino e ateu
só para enfeitar de lua e bebedeiras
o teu instinto de querer rasgar o Véu
que esconde nas rosas as caveiras.
Ah! esse Véu, esse Véu maldito,
que todos os poetas, mesmo sem pensarem nele,
sentem na imprecisão de cada grito
e no calafrio da pele.
Esse Véu, esse Véu que o tédio solda
às mãos, à cara e às fazendas...
E pouco a pouco nos amolda
a este mundo de cárcere sem fendas.
Mas tu não te resignaste e quiseste rompê-lo
de pé, de joelhos, de bruços,
com lágrimas de cutelo
e punhais de soluços.
Tudo em vão, poeta tudo em vão !
Ninguém pode talvez rasgar este Véu maldito que oculta e desvenda
o esqueleto de silêncio em fogo que nos ilumina !
A cada rasgão,
a cada nova senda,
aberta às unhadas na solidão,
sobe sempre do chão
mais neblina
num sufocar de vala
na escuridão...
E depois outra cortina !
Sempre outra cortina !
(Eh ! Poetas: vamos nós rasgá-la ?)
II
(Grito de Gomes Leal no céu:)
«Cansado de dormir no basalto,
morri e meteram-me numa nuvem de elevador.
E agora cá estou no céu alto
com uma estrela ao peito em vez de flor.
Mas qualquer dia dou um salto.
(Ou peço a um anjo que me transporte
para não quebrar as pernas.)
Estou farto de céu e quero mundo ! Quero morte !
Quero dor ! Quero tabernas !»
José Gomes Ferreira
N 9.7.1900 F 8.2.1984
posted by DE-PROPOSITO at 9:30 AM
http://de-proposito.blogspot.com
CHICO BUARQUE
SOB MEDIDA
Chico Buarque
Se você crê em Deus
Erga as mão para os céus
E agradeça
Quando me cobiçou
Sem querer acertou
Na cabeça
Eu sou sua alma gêmea
Sou sua fêmea
Seu par, sua irmã
Eu sou seu incesto
Sou igual a você
Eu nasci pra você
Eu não presto
Eu não presto
Traiçoeira e vulgar
Sou sem nome e sem lar
Sou aquela
Eu sou filha da rua
Eu sou cria da sua
Costela
Sou bandida
Sou solta na vida
E sob medida
Pros carinhos seus
Meu amigo
Se ajeite comigo
E dê graças a Deus
Se você crê em Deus
Encaminhe pros céus
Uma prece
E agraceça ao Senhor
Você tem o amor
Que merece
VEJA MAIS:
CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Fonte: http://novobloguerotico.blogspot.com/2008/09/chico-buarque.html
Sunday, September 14, 2008
SOU O POETA
Sou o poeta
que não aparece
nas colectâneas
sou o poeta
que não se adapta
à vida prática
que não atina
com as leis do mercado
que se aborrece
com o quotidiano
com a fala fácil
com a piada a propósito
sou o poeta
que não se reduz à mercadoria
que permanece à mesa
que tem os livros na livraria
sou o poeta
que vive como poeta
que ama os surrealistas
que vem ter com a amiga
sou o poeta
que escreve nos cafés
que vai aos bares
e bebe copos
sou o poeta que berra
que insulta
que amaldiçoa
sou o poeta
que traz a magia
que vomita a poesia
sou o poeta
que traz a revolta.
Porto, 14. Set. 2008
NAMORO
Friday, September 12, 2008
APR
Señor Tallon #33
Ouço na rádio que esta madrugada ocorreu o despiste de um camião na zona de Vilar do Pinheiro, próximo de Vila do Conde. De acordo com o repórter, o acidente não causou qualquer dano pessoal, apenas graves complicações no trânsito. À partida, trata-se apenas de mais um número para a sinistra contabilidade do Instituto de Estradas. Mas a verdade é que não consigo deixar de pensar que por trás deste acidente pode estar a imperceptível e astuta mão de alguém que conheço. O António Pedro Ribeiro mora por ali, em Vilar do Pinheiro. Ele sofre de insónias e costuma escrever poemas pela noite dentro e até romper o dia. Além disso é um tipo que gosta de dar nas vistas: faz performances e leituras de poesia em cafés, esplanadas e bares do Porto. E, sobretudo, tinha-me confessado, há uns dias, que estava farto e que em breve se faria à estrada.
posted by Rui Manuel Amaral at 09:01 R.I.P. 0 comments
DEBATE
Ontem e hoje não consigo escrever grande coisa. Não consigo ter grande piada. Mas o que importa é que não estou deprimido. Nem me deixo patrocinar por nenhuma marca. Venho ao Pátio ouvir a juventude. Perceber o que a juventude de hoje quer. Mantenho a posição anti-dinheiro, anti-trabalho e anti-mercado mesmo que os meus companheiros anarquistas opinem de maneira diferente. De resto, andei a ler a "Utopia". Não há dúvida que os anarquistas são os gajos de que mais me aproximo. Mas as minhas posições são algo messiânicas e nietzscheanas. Mas todas essas posições são debatíveis. Sempre gostei de debater ideias, mas agora mais do que nunca.
Subscribe to:
Posts (Atom)